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A ÂNCORA

Era fim de tarde e eu voltava para casa após meu serviço na metalurgia. Eu estava sujo e cansado, e a única coisa que me ocorria era voltar, tomar um banho, e repousar.  O trabalho naquela época era intenso, Londres crescia rapidamente com os avanços das máquinas a vapor, e para manter a indústria em máxima produção nós, os operários, dedicávamos mais de doze horas diárias de serviços. O salário era ruim, mas como era solteiro e não tinha família, era mais que o suficiente para eu sobreviver.
Cheguei finalmente a minha casa, numa periferia qualquer de Londres. Comigo moravam mais alguns trabalhadores, infelizes peões, todos chegavam mais ou menos no mesmo horário, logo a fila para o banho era gigante. Cumprimentei o velho ranzinza, Thomas. Ele era o dono do lugar e o que trabalhava há mais tempo com o carvão e as fábricas. Peguei meu jornal e sentei-me, mesmo sujo de fuligem, para aguardar a minha vez de tomar banho.
As notícias não eram de grande relevância, eu só queria passar o tempo. E assim foi. Logo Patrick saiu e assim que pousou os olhos em mim, disse-me:
-Tome logo seu banho que sairemos hoje.
-Não quero sair,só preciso de um pedaço de pão e um pouco de sono.
-Deixe de besteiras homem. Desde que aquela rapariga te abandonou você não vai mais para nenhum pub com seus amigos. –disse Patrick animador. – Quem sabe não encontra outra mulher, um homem sem amor é apenas braços que servem sem cansar. Precisamos delas, e você sabe disso. Vamos não se negue!
Não queria argumentar, na verdade eu não queria nem pensar. Passar o dia enclausurado próximo as fornalhas não era de todo ruim, por que um homem não poderia viver apenas de seu trabalho? Não, amores destroem o homem. Mas naquele momento eu não tinha forças para discutir com Patrick, e o velho logo viria me atormentar com seus jogos de cartas. Decidi sair.
Após ter tomado meu banho, e vestido minha única roupa de sair, fui de encontro com meu companheiro ao nosso pub de costume, o melhor da região. Lá se servia cerveja gelada e as mesas de sinuca eram sempre movimentadas. Era o pub do Gordo Verde.
Sabe quando saímos sem a intenção? Quando vamos a um lugar onde não queremos ir? Caso sim compreenderá o meu tédio ao ver todos aqueles barbados bêbados, e as raparigas rebolantes que se penduravam aos pescoços dos mais valentes, ou dos que despojavam de mais dinheiro. Nada ali era novo, mesmos rostos, mesmas canções, mesmas brigas. Queria ir embora.
-Onde pensa que vai? –indagou Patrick flagrando-me de saída. –Sente-se no balcão que eu tenho uma novidade para te contar. –Relutante eu retornei ao balcão.
Apoiei-me sobre a madeira e fiquei ouvindo a tal novidade, na verdade eu não o ouvi. Até porque nem me lembro o que era, mas foi naquele momento de total desinteresse que surgiu algo inesperado. O dono do pub estava atrás do balcão completando os grandes copos com cerveja, enquanto as garçonetes retiravam os copos cheios e distribuíam-nos pelo bar. Um copo de cerveja estava próximo a mim, e quando ele foi ser retirado eu vi de relance a mão que o retirou. Em seu delicado pulso vi uma tatuagem de âncora. A mão que pegou a cerveja era tão rápida e habilidosa que antes que eu pudesse notar em qualquer detalhe da tatuagem ela já havia desaparecido. Eu me virei imediatamente para localizar a mulher, mas o pub estava lotado e ela já havia desaparecido na multidão.
-Você esta me ouvindo? –perguntou Patrick impaciente.
Não, claro que não. No meio de tantas coisas sem graça e comuns, eu encontrei algo. Algo, que eu ainda não sabia o que era, mas eu tinha que descobrir. Procurei por todos os pulsos alheios vestígios daquela marca, mas em nenhum eu a encontrei. Meu amigo que já havia desistido de falar comigo e voltou para casa sem mim. Eu precisava ficar e conhecer a dona da âncora.
O primeiro sino tocou. Sinal de que todos os que queriam tomar mais alguma dose deveriam pedi-la imediatamente. O pub ainda cheio entrou em alvoroço, todos pedindo suas últimas doses para dormirem quentes e tranqüilos. Eu não. Espremia os olhos para encontrar aquela coisa, aquilo que chamara a minha atenção. Precisava, por motivos obscuros até mesmo para mim, encontrá-la.
O segundo sino tocou. Agora o dono já não servia mais nada e as garçonetes encaminhavam os últimos bêbados para fora do estabelecimento. Uma se dirigiu a minha pessoa com impaciência e pediu:
-Sir, agora o pub fechará. Não pode mais ficar aqui.
Eu ainda não a vira, eram apenas quatro garçonetes, mas a minha não estava ali. E assim eu fui embora. Levei comigo aquele pulso em pensamento. Pensamento pulsante, coração que bombeava por ele. Algo ali me tocara. Jurei que eu a encontraria.
Na semana que se passou eu voltei no pub todos os dias, estava gastando minhas economias, só para encontra - lá. Mas nem sinal da minha âncora. Eu pensei em anunciar no jornal, dizer que era uma irmã perdida, ou que havia encontrado algo dela, mas desisti. Achei melhor continuar indo no Gordo Verde, e lá fiquei. Eu já não comia, já não dormia direito. Minha barba estava grande como nunca, o cabelo bagunçado. Patrick, Thomas, e os outros estavam preocupadíssimos com a minha saúde, no fundo sabia que não era com a saúde física que eles se preocupavam, mas sim com minha sanidade mental. Eu sentia-me perdendo a noção, eu me flagrava pensando em como ela seria e em como ficaríamos felizes juntos. Como aquela mulher saberia cuidar de mim e em como somente eu saberia dar a ela o valor que ela merecia. As coisas iam mal.
Uma noite o dono do pub me perguntou por que eu sempre ficava lá até o segundo sino bater e não bebia nada. Queria saber o que eu queria. Contei ao senhor a minha história e o velho deu um salto para trás de susto.  Ele me contou que a dona da tatuagem era ninguém menos que sua filha, e que ela havia sumido há muito tempo. Ela costumava a trabalhar no pub, mas um dia qualquer desapareceu. Ele retirou de sua carteira uma foto da jovem e daquele momento eu jamais me esqueci. Era branca como o pai, mas seus cabelos eram longos e negros, caiam sobre seus ombros de forma natural e atraente. Seu rosto era forte marcado por traços de beleza rara, nos lábios desenhados um esboço de sorriso. Sorriso de menina sapeca, de mulher fatal. Seu olhar era composto por dois orbes negros, lançavam-me no vazio. Dragavam-me para dentro de si. Seu nome eu não consigo me recordar, algo na minha lembrança diz-me que era parecido com a luz, luz essa que guiou o meu caminhar. O pai se apiedou de mim e disse que talvez eu já a conhecesse e que tivesse tido alguma ilusão. Ele pediu-me que eu fosse para minha casa e que eu a esquecesse, já que voltar ela não iria mais.
Aquela mulher havia se tornado minha única razão de viver. A busca por ela era o que havia dado sentido á minha vida. Não poderia perdê-la, aquilo seria de mais para mim. Aquela mescla de sensualidade e inocência me levava a lugares que eu nem imaginaria chegar sem ela.
Eu voltei para minha casa naquela noite, tomei banho, vesti minha única roupa de sair. Saí sem dizer uma palavra a Patrick ou a Thomas, ou a qualquer outro que tenha me indagado.
Paguei a um cocheiro com minhas últimas economias para que ele me levasse até a margem do Tâmisa. O dispensei e esperei que ele sumisse na escuridão da noite.
Procurei por uma pedra e a atei com uma corda, que eu já havia levado, na minha perna. A água escura e fria tocava agora os meus calcanhares. Caminhei com dificuldade até a parte mais funda e longe joguei a pedra com toda a minha força de trabalhador. Ao atingir o rio, a pedra começou a afundar e a puxar meu corpo para o fundo. Tentei não relutar, mas o ser humano não quer morrer, não quer perder a única coisa que ele não escolheu ter, a sua vida.
Eu afundei poucos metros, mas era o suficiente para eu me afogar. Meu corpo tremia-se e contorcia-se, a dor era uma mescla de prazer e medo. Em fim eu parei, a água invadira a todo meu pulmão. Ao longe eu vi uma luz tremeluzir, era ela, Clara, vindo ao meu encontro. O ser iluminado sorria como na foto, mostrando a alegria de finalmente me ter aos seus braços. Ela me tocou no rosto com sua mão e eu vi novamente aquela âncora, aquela tatuagem, que desde o nosso primeiro contato esperava por me afundar.  Delicadamente ela tocou seus lábios nos meus, e eu pude sentir o gosto da morte, seus braços me envolviam e o fim era eminente. Eu queria aquilo. Eu não tinha amigos, família, nada. A única coisa que tive na minha vida fora aquela âncora, linda e especial, na qual eu me agarrei sem medo e deixei-me afundar. Levou-me para perto de si, para perto do meu amor.


 
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