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O semeador e o encantador de lobos

Contaram-me uma história de tempos não mais narráveis, de quando antes da aurora da escrita acontecer e antes da fúria dos céus cair sobre a terra, existia ao norte das grandes montanhas da asia um reino tão rico e tão vasto que só poderia ser comparado às terras atlantianas ou as lendas de Sarnath. Tal reino, disseram, havia sido até tal momento eterno sendo erguido antes mesmo das fundações do mundo a habitado por seres de grandeza e brilho jamais imaginados. Esses seres atemporais viviam em júbilo e aguardavam que a grande obra chegasse. O reino então se tornou real e os seres foram aprisionados na forma de homens grandes e pequenos se esquecendo das maravilhas do espaço antes de tempo ao contemplarem as belezas nascidas daí em diante na terra.
Um dia, ouvindo boatos sobre reinos que se erguiam ao ocidente e ao oriente e de balsas gigantescas que superavam até mesmo a glória de suas embarcações, o povo do norte temeu e clamaram por um rei. Antes da primeira guerra nascer foi forjado o primeiro rei que com a força esquecida dos céus lutou contra forasteiros e trouxe paz a um reino que não pediu pela guerra.
Este rei era poderoso e justo, e o povo o amava. Quando, um dia o rei tomou para sí uma esposa o reino celebrou de uma lua cheia até outra e cantou ao redor de uma grande arvore que crescia ao redor do palácio. Por toda a terra ouvia-se as novas, por onde o rei e a rainha eram aclamados por toda sorte de poetas e cantores.
Um dia, segundo me disseram, a rainha foi tomada de infelicidade e o rei não sabendo como agir para com sua amada deixou ao tempo a tarefa de lhe resolver a dor. Quando a dor se tornou por demais agressiva, a rainha se confessou ao rei e compartilhou sua dor. Esta, ninguém nunca foi capaz de contar ou narrar, pois o rei ao ouvir calou-se e partiu em direção as montanhas.
Naquela noite, luzes de todas as cores dançaram nos céus e sons diversos povoaram o ar e de manhã a grande árvore estava ao chão. Pela última vez o rei foi visto andando pelos palácios do jardim, abraçando seus jardineiros e se prostrando ante seus servos mais amados. Naquela noite pelo conselheiro real foi proclamado a última ordem do rei agora desaparecido. A ordem dizia:

"O povo não precisa de um rei, mas clama por um
O medo do povo enfraquece nossa terra
O medo do rei se esconde de seu povo
O novo rei deve surgir do povo
O tempo lhe será o professor

Aquele que se ergueu antes as montanhas
Antes não será o que governará
Agora a tudo se atém o amor
Antiga profecia esquecida
A quem a rainha por fim amar
A coroa receberá"

O povo se pôs em polvorosa e as reações foram das mais diversas. Alguns pensavam ter agora a chance de receberem a coroa, outros choravam pelo rei, alguns amaldiçoavam a rainha e alguns ainda rezavam pelo casal real. A rainha permaneceu em silencio, impassível diante de sua decisão e aceitando a ordem do rei.
Mas passados seis anos, ninguém atendeu aos desafios do castelo e nem a rainha.
 Contam-me que um dia, vindos através das montanhas dois homens chegaram ao reino e procuravam descansar nos bosques antes de entrar na cidade.Eram estes homens, um semeador errante e um conhecido encantador de lobos.
Depois de andarem o dois homens encontraram-se em uma clareira onde a luz do luar iluminava o bastante para permanecerem seguros e uma arvore oferecia proteção e frescor na noite quente.
- Onde vai, viajante? - Perguntou o semeador
- Vou ao castelo sem rei, conhecer a rainha e conquistar seu coração. - Respondeu o Encantador de Lobos
- Ora, se não é também esse o meu destino, mas não pretendo conquistar a rainha. Pois ela mesma me dará seu coração.
- Pelo que ouvi dizer, a rainha não entrega seu coração a muitos.
- Pelo que ouvi, ela já o fez antes.
- Que seja, meu amigo, pela manhã seremos rivais. Mas por hora, seria bom mantermos nossa honra e nos tratarmos por homens civilizados. Tenho aqui alguns pães e queijos que trago da viajem.
- Tenho algumas frutas que trago do litoral. E bastante água das fontes térmicas do oriente.
Os dois dividiram sua comida e sentaram-se abaixo da arvore que balançava ao ritmo de uma brisa que acabara de chegar. Olhavam para os céus e para as copas das arvores tentando encontrar o sono da noite.
Antes que a noite vencesse os viajantes, um brilho fulgaz azul cruzou os céus e o semeador falou:
- Por que vem de longe tentar roubar o coração da rainha.
- Eu creio que não existe mais ninguém que seja tão capaz de domar tal mulher.
- Domar?
- Sim, ela é como uma loba. Difícil de se conquistar, mas depois de conquistada jamais se deixará levar por outro senhor. Já encontrei todas as raças de lobos existentes desde as terras geladas de Pharhir até os desertos de ocidente e nenhuma mulher pode ser mais resistente que a teimosia sangrenta de um puro sangue dos bosques que cercam a terra dos atlantes. Mesmo aquela mulher, cujos olhos são um portal para o infinito.
- Os olhos da rainha? Você os viu? Num sonho?
- Como sabe?
- Não sei, estou lhe perguntando.
- Sonhei com ela algumas noites atrás, a vi em seu leito chorando e não me atrevi a me aproximar. Andei por todo o castelo e ví os quadros do antigo rei rasgados nas paredes. Acordei e ví que todos os meus lobos haviam desaparecido e comecei a andar. Tenho andado desde então e cheguei aqui, como se meus passos estivessem sendo guiados.- Disse o encantador
- Eu ouvi uma voz enquanto estava a lançar sementes nos campos do litoral dos intocáveis. Fui chamado a esta terra para me tornar um rei antes que os povos do ocidente, de uma nação jovem chamada Babilônia, ataque estas terras. A voz me disse que se um rei se assentasse no trono os reinos teriam medo e o povo seria poupado da escravidão e morte.
- E a rainha?
- Sonho com seu rosto desde o primeiro sonho que me lembro. Nunca soube quem ela era, nem por que cantava uma canção a cerca de sua beleza e sabedoria. Um canto triste enfim, pois ela sempre me pareceu um tanto sobrecarregada com o peso das suas responsabilidades. Isso me assusta, pensar que para amá-la de verdade eu tenha que carregar este fardo e talvez não ter força para tal.
- E pensa que pode conquistar uma mulher tão forte, se fazendo tão fraco?
- Não a conquistarei, não sou um domador e nem acho que uma mulher deva se tratar como se trata um animal selvagem. Sou um semeador, eu deixo que as sementes tenham seu tempo para germinar e brotar. Assim penso que é o amor de uma mulher tão fantástica.
- Tolo.
- Talvez o seja, mas tal formosura merece respeito e não dominação.
- Talvez o respeito deva ser um pouco auto imposto para que seja justo.
-Talvez.
A lua se movia no céu lentamente, mas a cada vez que os olhos dos homens se cruzavam ela acelerava em direção ao seu poente. As lembranças pouco a pouco se completavam diante da conversa, enquanto o luar de tornava azulado e se escondia por trás da grande árvore cobrindo os dois homens e projetando suas sombras distante além do bosque, até a cidade murada e chegando ao castelo como um homem gigante. Os dois homens conversavam enquanto o brilho antigo se acendia nos corações dos homens e mulheres da cidade e a rainha sentia enfim a liberdade que o rei encontrou no passado e que ele tarde demais quis lhe entregar. Ela acordou em seu quarto no palácio, e ao ver a sombra e o poder antigo que muitos haviam esquecido tocou seu coração numa prece, a sombra que se projetava na cidade já não pertencia àqueles dois homens. Era a sombra de um rei amado.
Isso ao menos, foi o que me contaram.

Quem ama, vai a França

Admito que nunca soube muito bem quem eu sou nesse mundo. Sei sim que meus pais me chamaram Roberto em homenagem ao meu bisavô, me deram alguns nomes do meio para ficar sonoro e por fim o Fonseca para sacramentar minha origem gênica. Nunca pensei muito sobre meu nome e nem achei que me definia. Nunca me senti "Roberto", mas me senti sendo filho dos meus pais, eu sabia disso e nada mais. Ao longo desses 32 anos então fui chamado de coisas as quais nunca dei importância. Até que fui chamado de algo que pude entender e sentir, esposo. Fui muito feliz com essa definição, e no início achei cair muito bem. Me bastava me definir como filho e como esposo, todo o resto me parecia passageiro. Mas este último nos tempos recentes deixei um pouco de lado. Penso ser por culpa do ócio que me foi imposto pela briga infrutífera dos sindicatos com o governo, nessa queda de braço que se diz próxima de acabar mas que apenas prenuncia a próxima. Mas desta vez foi diferente, nos últimos anos eu me enterrei no trabalho deixando boa parte de minha vida nele. E voltar para casa agora me faz ver o mundo de outra forma. Acabei por ver que me distanciara demais da minha mulher a ponto de quase não mais fazer parte da rotina dela. Já não me sentia capaz de ajudar em seus problemas e nem de entrar em seus pensamentos. Não que estivéssemos nos tratando mal, longe disso na verdade, mas faltava algo. Talvez uma certa ternura ou intimidade e eu não parecia ter motivação para mudar nada.
Ela por sua vez estava sempre cansada. Se já não bastasse o cansaço físico e mental de uma engenheira de minas ainda se ocupava dos afazeres domésticos, já que eu me mostrei um desastre no lar logo no primeiro dia de greve e ela nunca aceitou uma empregada doméstica. Seu gênio forte afinal, não me deixava chegar perto apesar de sabermos que era necessário. Um impasse terrível.
Sem saber mais o que fazer, deixei ao diabo tomar conta da oficina e fui tomado de ideias várias, todas nocivas ao meu relacionamento.
Foi então que recebi um telefonema de um amigo. Valtercir Mendes, letrado e historiador que há alguns anos vivia na França realizando uma pesquisa financiado pela faculdade. Dizendo que me enviaria as cópias de um achado. Ele dizia que havia se impressionado com a história narrada por ele e que achava que alguém como eu logo a tornaria famosa aqui no nosso país. Não havia por que negar e no dia seguinte chegou a encomenda.
Admito que não sou tão bom entendedor do francês quanto meu amigo, mas não acho que tenha perdido muito pela minha tradução pautado em um pobre langue d'oc que mal domino. Apesar de não citar nomes, o longo texto parecia ser um diário  e aparentava ter alguns dias entre cada escrita. O texto era tão belo e o conto narrado tão perfeito que não admitiria ser real, embora seja nisso que quero e que vou acreditar. Li rapidamente, com algumas licenças  e adaptações, aquilo que um jovem sapateiro escreveu em algum lugar ao sul da Borgonha no século XIV e fiquei fascinado. Li novamente dando enfase em algumas partes que comecei a transcrever num pedaço de papel:

" Entendo que seja esta uma vida dura. Penso entender um pouco mais do que os outros. Não que sofra mais do que eles, mas entendo melhor. Não simplesmente por ter a chance de aprender desta outra maneira, mas principalmente por estar com ela. 
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Sempre me perguntam por que escrevo, alguns me perguntam como aprendi. Como passou a ser meu hábito registrar tudo contarei minha história para que possa me ligar à história dela. Meu pai gosta de caminhar próximo às muralhas pouco antes do entardecer. Para que ele nunca nos disse, mas conta que um dia enquanto andava pela relva seca ouviu um grito de menino seguido de rosnados. Correu na direção do som e encontrou um garoto se escondendo num buraco no chão cercado por dois lobos. Tomando um pedaço de madeira ele acertou um dos lobos e com alguns golpes os afastou dalí. Cuidou do menino por algum tempo até que soldados montados chegaram e ele foi levado para um acampamento onde foi interrogado. Nos dias seguintes fui avisado que receberia aulas de escrita e leitura em honra ao meu pai que havia salvo o filho do príncipe que caçava naquela região. Meu pai sempre dizia para minhas irmãs que por ter salvo o menino, havia me salvo também da ignorância.
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Era já uma época difícil, quando aprendi o ofício de sapateiro não pude tomar posse da profissão, mal havia comida e o Senhor não podia pagar por dois sapateiros. Trabalhava sem receber então, ajudando meu pai no ofício sem reclamar. Gostava daquilo. Mas tendo que fazer algo que mostrasse qualidades fui para a lavoura onde habilidade não é prioridade quando se tem força. Divida o tempo entre os dois trabalhos e meus estudos quando acabava por encontrar um livro nas redondezas do fosso deixados pelos filhos do Senhor.
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Passado um tempo, acabei por finalmente notá-la. Com seus cabelos cacheados que pareciam dançar com o vento. Ela carregava fardos de trigo sem reclamar e ainda assim parecia um anjo no meio da peste e da fome enviado por Deus para acalentar os corações do homens e nos lembrar que o céu ainda nos aguardava. Não me atrevi a falar com ela, na verdade mal falava com ninguém. Os livros ficaram escassos e não tinha mais moedas para trocar com os comerciantes que passavam pela vila vez em quando, então comecei a escrever estas mesmas palavras para ler de qualquer forma. Então, curiosa como deve ser um anjo na terra por saber do que se divertem os homens, ela veio até mim.
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Conhecê-la é como olhar as estrelas, como cantar milagres ou dançar comemorando uma boa colheita. Penso que ela tenha nascido por engano entre nós ou que use um disfarce. Seus gestos e pensamentos não condizem com os de uma plebeia, ela anda e pensa como uma princesa e conhece muito do mundo. Diferente de mim, ela não viveu sempre aqui e esta é a razão de eu nunca a ter visto por aqui. Seu pai era cambista e viajava levando-a com sua mãe e irmãos por castelos de todo o reino onde ficava por certa estação pesando as moedas. Por suas viagens ela havia conhecido muitos trovadores e iluministas que adoravam ensaiar suas falas diante da menina-anjo falante e curiosa. Mas um desejo ela nunca havia tido a chance de concretizar. Queria aprender a ler e escrever para registrar as ideias que tinha do mundo. Não podia lhe negar isso, uma vez que cada vez que conversávamos eu ficava sem fala. Eu que sempre me considerei sabido dentre os camponeses, agora me via diante de uma vida inteira de conhecimentos que nunca imaginara fora dos poucos livros que lí. Passei a encontrar-me com ela todas as noites para ter com ela.
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Com a sutileza de uma criança que se entrega pela mão, ela me permitiu ensinar as palavras e os seus desenhos e pediu-me que lhe deixasse retribuir. Como seu pai lidava com os valores e pesos das moedas, ela e os irmãos desde cedo aprenderam a matemática dos cálculos e isto ela queria me ensinar também. Muito pouco eu sabia sobre calcular, mas tentei aprender tudo de bom grado. Encontrávamos no alto da colina e nossos encontros passaram a durar mais e se estendiam até a hora em que a lua se põe alta no céu como rainha do estrelado. Eu dizia ao anjo que a luz da lua a deixava ainda mais linda do que durante o dia e ela pedia que eu não fizesse elogios, mas que esperasse pela sombra da lua. Quando a lua por fim se escondeu perto da estação da semeadura ela não apareceu na hora programada, eu caminhei pela colina e encontrei uma bela flor vermelha. Mal a colhera e o anjo chegou com um sorriso radiante. Recebeu minha flor e disse que com a sombra da lua ninguém nos poderia ver com perfeição no alto do morro e então, ainda olhando para o sorriso radiante, eu a beijei.
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Tamanha fora minha alegria estes dias que mal me atentei para escrever, mas com a dor que sinto agora e sem formas de a por para fora senão neste pífio pedaço de papel. De que me adianta escrever se nada posso fazer? De que me adianta todo o saber? Nós nos amamos, sempre que tivemos a chance nos amamos. Agora o príncipe a quer por esposa, e que farei eu se pertenço também a ele. Mas temo, que quando ele descobrir que ela não será dele decida matá-la. E eu o que farei. Nada posso fazer diante do martírio dela? Tenho apenas rezado, sem sequer coragem de contar ao padre o por que. Não confio mais no padre, mas confio no Cristo e sei que ele não permitirá que morra um de seus anjos. Se bem que ele próprio já morreu por uma causa, rezo para que não seja esta morte também divina.
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Está tomada a decisão, está tudo acertado com o anjo. Jogarei carne de perdizes nos portões do castelo e nos muros, a noite os lobos já estarão aqui. O príncipe ainda tem medo de lobos desde aquele fim de tarde, certamente ele enviará seu homens para matá-los e a deixará só por tempo suficiente para que saia do castelo como fez na noite passada. Partiremos pela colina ao cair da noite, na sombra da lua. Na estrada a família dela nos esperará e partiremos para um outro lugar onde nossas conversas noturnas tenham seu lugar. Estas cartas ficam então para vocês a quem dedico meu carinho e agradecimento por cuidarem de mim enquanto aprendia a ler e calcular. Que me protegeram e instruíram até que eu encontrasse meu anjo.

E assim terminou o texto, sem menção nenhuma ao resultado do plano. Esse fim aberto me deixou pasmo, teriam todas essas coincidências ocorrido para que no fim o jovem sapateiro fosse pego em seu plano e por fim acabasse morto como exemplo ou a sombra do luar teria dado aos amantes a oportunidade de encontrar outro feudo onde pudessem viver. Apesar de poder apostar, jamais saberia o fim do conto, uma vez que nunca haveria de ser escrito mas sim apenas vivido.
Enquanto devaneava no assunto, minha esposa entrou na sala já chegando cansada do trabalho. Olhei para ela e naquele mesmo instante uma ideia se apossou de mim enquanto ela soltava seus cabelos cacheados. Me sentem perto dela e perguntei como havia sido o dia dela. Ela respondeu de forma um tanto fria mas dessa vez não me aplaquei, entendia que era uma via de mão dupla e que eu deveria fazer mais para despertar aquilo que nós dois precisávamos. Coloquei as mãos em seus ombros e comecei a massageá-los. Ela estranhou, mas que mulher recusa uma massagem, ainda mais depois de um trabalho exaustivo. Disse que ela era o meu grande segredo e meu maior tesouro. Disse a ela que nunca esqueceria que era meu anjo, enviado por Deus para lembrar aos homens que ainda havia um paraíso nos esperando. Ela sorriu e disse que eu não falava muito de Deus. Eu assenti com a cabeça e disse que a amava, sentia despertar nela algo que estava adormecido em mim. Ela se virou na minha direção, suas feições sempre joviais retornaram à face e um sorriso maravilhoso se formou em sua boca. Era o sorriso mais lindo que já havia visto na vida. Perguntei à ela:
- Quer ir à França comigo?

DOCE MEL


Sabe aquela vontade, esperança, de que algum dia vai aparecer na sua vida alguém que vai mudá-la para sempre? Então, isso aconteceu comigo, e por muito tempo eu me perguntei se isso foi uma coisa boa ou ruim. Se a chave de toda a minha transformação veio para melhorar ou para simplesmente complicar a minha existência nesse planeta. Meu nome é Ricardo e vou contar para vocês a história da mulher que mudou a minha vida.
As pessoas brincam que trinta é a idade do sucesso, e que é lá que você começa a viver plenamente. Para mim não poderia ser maior esta verdade. Aos meus trinta anos eu já era dono de várias lojas, e vivia dos aluguéis destes imóveis. Tinha uma namorada linda e rasa, par perfeito para um homem que não gosta de ser questionado. Dinheiro, beleza, risos, eram coisas que faziam parte da minha vida. Eu adquiri certo prestígio social na minha cidade, já que meus imóveis eram muitos e eu fornecia estes espaços para lojas de qualidade. Eu estava nas colunas sociais dos jornais populares, e até me tornei vereador.  Um sonho de vida.
Algum dia, um dos espaços mais disputados no centro ficou vago, e as propostas choveram sobre mim. Eram farmácias, locadoras, pizzarias, bares, todos querendo o lugar. Laura, minha então namorada, era admiradora do balé e seu sonho era ser uma bailarina. Atendendo ao seu capricho, decidi ceder o espaço para uma renomada escola de dança. Por mais que alguns clientes antigos ficassem bravos com a ideia, eu não poderia desgostar a mulher a quem possivelmente me casaria. E assim foi. Troquei telefonemas com a proprietária, que se apresentou como Daniela, e agendei um encontro.
Cheguei ao restaurante, onde eu tradicionalmente realizava estas reuniões, com alguns minutos de antecedência. No meu ramo, demonstrar respeito ao cliente é uma boa forma de ascensão.  Passado algum tempo Daniela apareceu. E desse momento em diante minha vida já não fora mais a mesma.
Daniela era uma mulher alta, de corpo delicado e miúdo, andava altiva. Seus cabelos loiros e lisos, presos num alto rabo de cavalo, refletiam o sol. Seu rosto desenhado em linhas finas, e um olhar distraído, marcavam esta beldade. Ela se aproximou e me cumprimentou, eu em distração não disse uma palavra.
-Boa tarde, Daniela. – disse depois de algum tempo, sem jeito.
- Pode me chamar de Mel, por favor. – pediu ela.
Pronto, eu sabia que aquele vacilo, dado frente a ela, me faria desandar com toda a comodidade que minha vida vinha apresentando.
Recomposto, discorri toda a burocracia e finalizamos o acordo. Seria ela quem ocuparia o espaço central, tornando-se assim umas das clientes com a qual eu teria que estar em constante contato. Terminada a reunião eu me despedi apressado, não queria continuar por muito tempo admirando aquela figura.
Laura nunca me pareceu tão empolgada quanto naquela época. Ela vestia suas roupas, colocava sua sapatilha, e saia radiante para suas aulas. Ela ficava mais linda do que o de costume, mas nem de longe se comparava a Mel quando em seu traje de balé. Quando dançava, nas oportunidades que tive de apreciar, Mel mudava o seu olhar que passava daquela doçura distraída para um foco inabalável. Seu corpo ridiculamente feminino fazia parecer espantoso a força e a agilidade com que ela descrevia os movimentos. A cada visita à escola eu me demorava mais. Cada vez mais envolvido com a professora. Nós começamos a trocar olhares. Ela percebeu que eu não estava mais ali pela Laura, mas sim para vê-la dançar. E nisso Mel não perdoou. Sua dança foi ficando mais intensa, os passos mais alucinantes, sua respiração ofegante me fazia estremecer. Tive medo do que pudesse acontecer, eu gostava muito da Laura para traí-la. Eu precisava decidir a minha vida.
Mulher sabe quando esta sendo trocada, e Laura que de boba tinha só a cara, começou a reclamar da minha frieza, das minhas delongas no trabalho. Me colocou contra a parede. Eu já não aguentava mais aquilo.
Um dia contei a Laura sobre a minha queda pela Mel. Num primeiro momento Laura ficou extremamente aborrecida, mas depois ela me olhou com desprezo nos olhos. E me disse, da maneira que se segue, sem mudar nenhuma palavra:
-Então saiba você, Ricardo, que você está apaixonado por um homem!
Eu não entendi a frase naquele momento, mas ela fez questão de me explicar. Contou o segredo mais íntimo de sua amiga e professora. Mel, Daniela, era antes na verdade Daniel. Um transexual.
Senti-me envergonhado, enojado, enraivecido, enganado, entre muitas outras coisas. Laura conseguiu o que queria. Ela saiu tempestuosa levando consigo todas as suas coisas e o sabor de ter me destruído.
Eu fiquei três semanas absorto em pensamentos. Tranquei-me em meu apartamento e fiquei remoendo meus sentimentos. Refleti sobre tudo que via de bom na Mel, na potência da nossa química. Era inegável, eu ainda gostava dela. Por mais racional que eu tentasse ser, por mais doloroso que fosse, era preciso admitir, eu gostava de uma mulher que não era mulher.
Daniela me ligou com alguma frequência, preocupada comigo, quando soube dos fatos. E eu a neguei. Neguei pelo tempo necessário até que a minha ficha caísse.
Decidi estudar, corri atrás. Li livros de psicologia, e procurei na internet, vi depoimentos, estudei casos de pessoas famosas. Depois dos meus estudos a resposta estava clara diante dos meus olhos. Ela nunca foi um homem. Mesmo nascendo como tal, ela não via e sentia sua identidade assim. Quem era eu, ou a Laura, para dizer que “ele” na verdade não era ela?
Tomado de ânimo renovado, e coragem, após todo o meu transtorno, decidi procurá-la. Ela estava no mesmo lugar, da mesma maneira em que eu havia visto da última vez; dançando. Se era “O Quebra Nozes” ou “Lago dos Cisnes”, não saberia dizer. Tudo o que eu sei é que atravessei o salão em meio à melodia que tocava no fundo e a tomei em meus braços. Beijei como se nunca tivesse beijado antes, não com aquele mesmo amor. Olhando novamente para o seu rosto eu não via Daniel ou Daniela, mas sim a pessoa com a qual eu passaria o resto dos meus dias: Mel.


O Palhaço e a Princesa




 Jules despertou de um longo e confortável sono para mais um dia de trabalho no circo. Era um artista talentoso, e viril como qualquer atleta, mas sua real alegria estava em ser palhaço. Amava aquilo que fazia, e fazia muito bem, aliás.
 Logo que se trocou, puxou com cuidado a lona que protegia um quadro em sua tenda e saudou sua outra grandiosa paixão, dessas capazes de mudar um homem para sempre.



 Fora há algum tempo, numa noite abafada, que Jules conheceu Mendy. A mãe da garota conversava com o dono do circo, estava a procura de artistas que animassem o décimo quinto aniversário da filha. Quando Jules saltou no picadeiro mostrando-se o mais animado, acompanhado de Du, seu colega de palco, a princesa Mendy ficou tão encantada com a habilidade dos garotos e suas roupas bem trabalhadas, que logo insistiu para que a mãe os contratasse. Eles eram perfeitos!
 Para a rainha bem vestida não passava de algumas moedas, além da realização das fantasias de sua jovem filha. Du queria apenas se divertir, mas era Jules que explicitava um brilho diferente no olhar,  sentiu-se atraído pela beleza da princesa e não conteve um solene cumprimento. Mendy? - perguntou a mãe. E a princesa, bastante animada, acenou com a cabeça em aprovação.

 Com o avanço dos dias, Jules e Mendy se encontraram com certa frequencia, nos ensaios das peripércias de Jules e Du, ou quando o garoto armava situações inusitadas para ver sua amada. Tentava sempre uma aproximação mais íntima com a princesa, mas ela impunha limites à relação. No fundo, Mendy gostava da presença de Jules, mas nada sentia além daquele apreço. Nunca percebeu o real interesse do garoto e se esquivava sem culpa sempre que ele investia.
 Em Jules crescia o sentimento. Du o aconselhava a desistir, pois conheceu algumas damas da princesa e elas  lhe contaram sobre as escapadas reais de Mendy. Ela não é bem uma princesinha amigo... - brincava Du, mas Jules se negava a acreditar. Era Mandy seu mais doce devaneio. Adorava passar horas e horas pensando nela, e quando os viajantes bardos entoavam Minha Paixão, não havia nada como se imaginar junto dela ao som de tal composição. Ainda que tudo aquilo fizesse parte de um sonho não realizado, Jules estava feliz por ter alguém a quem dedicar sua atenção.
 Não demorou muito até que as primeiras crises aparecessem. Mendy contava a ele sobre suas aventuras infames com os jovens nobres do reino, e aquilo o deixava furioso por dentro. Era inaceitável que alguém compartilhasse do corpo e da atenção de Mendy que não fosse ele, ainda que do corpo ele nunca tivesse provado. Jules não permitia que a princesa notasse sua reprovação, e a aconselhava a deixar seus pretendentes de lado, pois eles não a mereciam. Mas ela insistia em seu erro, e declarava-se apaixonada demais para perceber o quanto sofria por amor.
 No dia anterior ao baile de aniversário, Jules presenteou a princesa com um belo corpete que comprará de uma cigana com todas as suas econômias. O abraço de agradecimento que Mendy lhe deu ficou guardado em sua memória para sempre.

 Na esperada noite, Jules e Du estavam esplêndidos em suas vestes verdes e vermelhas, repletas de rendas douradas, tanto que não pareciam palhaços, mas sim artistas mágicos vindos de terras distantes. O anúncio das trombetas silenciou a festa para a chegada da princesa, que se destacava em seu vestido negro perolado, descendo graciosamente o lance de escadas que dava acesso ao jardim do castelo onde morava, e também aonde a festa acontecia.
 As festividades atravessaram a noite mantendo sua majestade. À meia noite, todos os convidados ergueram suas máscaras para o baile e iniciaram a coreografia da crescente valsa. Observando enquanto se equilibrava numa grande bola, ao mesmo tempo que soprava fogo pelos ares, Jules percebeu o contato íntimo de sua protegida com vários convidados almofadinhas, e burburinhos vindos de todos os lados julgavam a conduta promiscua da princesa. Jules estava confuso. Não pode ser! Primeiro Du, e agora uma explosão de evidências tantavam provar que a menina dos seus olhos era na verdade uma adolescente rebelde e sem nenhuma decência. Perdeu o equilíbrio, mas evitou o pior, flexionou os joelhos e saltou por sobre alguns convidados, caindo com graça e segurança e afastando-se do ambiente infestado de máscaras sombrias. Por fim, cuspiu o álcool que queimava em sua boca e chamou Du para que fossem embora. Já fizemos o bastante por aqui. E permaneceu em silêncio durante todo o caminho de volta.

 Nas semanas seguintes, Jules procurou por Mendy, mas a garota desapareceu. Ouviu rumores de sua presença em alguns eventos, mas não conseguiu tempo hábil para encontrá-la. Mandou-lhe uma carta que, com uma inabalável certeza, sabia que não chegou às mãos da princesa. Certa noite, já estava à beira da loucura quando a gota d'água que transbordaria seu desespero estava prestes a cair. O circo vair deixar a região Jules, junte suas coisas pois partiremos em dois dias. Ele já esperava por isso, mas não agora, não sem antes falar com ela ou apenas vê-la novamente!
 Naquela mesma noite, Jules correu pela floresta rumo ao castelo, tão ofegante e determinado que mal sentiu a vegetação nociva lhe arranhar os braços e o rosto. Passou despercebido pelos guardas que faziam a ronda noturna e como um gato adulto escalou até a sacada do quarto da princesa.
 Entrou sorrateiramente pela janela e encontrou a Mendy dormindo, aconchegada em sua cama. Jules sorriu ao vê-la tão delicada, caída naquele profundo descanso. Encostou-se no beiral da janela e ali ficou por quase uma hora. Talvez, ver seu grande amor pela última vez seria o bastante se um papelzinho amassado em cima da penteadeira não tivesse lhe chamado tanto a atenção. Roubou o item, mas acabou tropeçando num cavalete, que não caiu graças ao equilíbrio da tela que repousava sobre ele. Sem mais ruídos, Jules arrumou a bagunça e fugiu sem deixar rastros.
 Ele não dormiu naquela noite. Retornou ao circo, recolheu pedaços de pão, enfiou tudo numa bolsa de couro junto a um cantil com água e sumiu de volta pela floresta. Passou a noite em cima de uma árvore numa clareira, cochilando gradativamente, mas sua mente projetava pesadelos terríveis referentes àquele maldito bilhete sem assinatura.

 Pela manhã, ouviu uma carruagem próxima ao local onde estava, e logo vozes femininas ecoaram pela clareira. É ela! Mendy estava acompanhada de uma amiga, um possível disfarce para o encontro, logo elas trocaram cochichos, e depois de algumas risadinhas, dois rapazes surgiram do meio da mata e se reuniram com as garotas. Um deles levou a amiga de Mendy para outra parte da floresta, deixando a princesa sozinha com o outro rapaz. Jules entrou em choque. Ver sua garota nos braços de outro era uma visão aterradora. Ela não pode fazer isso... não! Uma garota tão doce e inocente... Esse marginal deve pagar por ter corrompido o coração da minha princesa! E como nunca antes, estava determinado a reagir contra aquela situação antes de partir.
 Uma hora mais tarde, a carruagem voltou para recolher Mendy e sua amiga no mesmo local. Os dois rapazes fizeram comentários maliciosos sobre as garotas quando se encontraram, mas logo se despediram e se separaram pela floresta. Rapidamente, Jules desceu da árvore e seguiu aquele que há pouco tinha Mendy nos braços. Recolheu, no solo da floresta, um pesado galho podre e levou consigo; sua vítima mal notou sua presença, então ele o acertou na nuca e o derrubou. O garoto foi ao chão assustado e com medo, recuando conforme suas forças permitiam. Jules o acertou mais duas vezes na cabeça e jogou fora o galho. Não satisfeito ao ver o garoto ensanguentado e ainda vivo, subiu por cima dele e sentou-se em cima de seus braços, impedindo qualquer reação, e forçou as duas mãos contra a garganta do rapaz, que fitou os olhos furiosos de Jules enquanto este o estrangulava sem piedade.
 Jules aproveitou o resto da tarde para cavar uma cova rasa e enterrar aquele que, segundo ele, corrompeu sua bela amada. Não havia remorço nem culpa. Sentia-se leve, como se o único caminho correto acabasse de ser percorrido. Voltaria ao circo para arrumar suas coisas e dormir profundamente, pois precisava estar descansado para o último dia antes de sua partida e preparado para se despedir de seu grande amor.

 No outro dia, acordou assustado e molhado de suor, o rosto do rapaz que ele havia matado o assombrou pela madrugada. Ao ver que as estruturas do circo já estavam quase todas em ordem para partir, aliviou-se. Talvez um lugar bem distante daqui me faça esquecer toda essa loucura. O céu ficou vermelho depois do pôr-do-sol e a noite caia devagar. Jules estava distraido com o trabalho quando ela apareceu. Soube que o circo vai embora, e vim me despedir de você. Mendy estava de branco e falava como um anjo recitando um poema, por fim ela o beijou no rosto e foi embora sem mais delongas. Não! Espere... eu preciso falar com ela!
 Jules a seguiu pela floresta, mas foi interrompido por uma risada alegre e estridente da própria Mendy. Se escondeu para não ser descoberto e espiou por entre os arbustos. A princesa estava agora nos braços de outro rapaz, o namorado de sua amiga. Jules enterrou suas unhas no chão de terra e evitou um ataque súbito quando ouviu a conversa do rapaz sobre a princesa ter um caso com um palhaço. Mendy negou. É um palhaço, oras! O que minhas amigas pensariam? Por entre risos e festins, beijos apaixonados e carícias, Jules finalmente percebeu que a praga que dominava Mendy não estava em seus amantes, mas permanecia viva dentro dela.
 Retornou ao circo, para sua barraca, e chorou a morte do rapaz estrangulado. Mendy não merecia tais atitudes de minha parte. Por que eu não a ignorei? Continuou a se culpar até seu surto final, quando se levantou, recolheu um pedaço quebrado de espelho junto à tinta que usava para se pintar e sentou-se num canto mal iluminado. Ali, rasgou seus cabelos longos com a lâmina do espelho e pintou seu rosto segundo o que realmente havia se tornado: um palhaço triste e perdidamente apaixonado.
 Irrompeu de volta ao castelo numa noite em que até o ar cheirava a sangue. Novamente não foi notado pelos guardas e quando se preparava para subir até a sacada de Mendy, ouviu a voz da princesa soar baixo em algum lugar por perto. Certamente, ela não estava em seu quarto. Seguiu sua voz até encontrá-la. Estava debaixo de uma pequena ponte nos jardins do castelo, aos beijos com aguém que Jules não reconheceu, mas que julgou ser o mesmo rapaz que avistou com ela antes, naquele mesmo dia. Esperou até que se despedissem. O rapaz foi embora e Mendy voltou para o castelo.
 Assim que as luzes do quarto se acenderam, o palhaço subiu.
 Ela estava linda - vestida com o corpete que havia ganhado de Jules. Sentou-se em frente à penteadeira, soltou o diadema de prata que prendia seus cabelos e ali os escovou graciosamente. Ao ver o palhaço no espelho, seus olhos saltaram em surpresa, mas era tarde! Ele a impediu de se virar e a manteve sentada, encarando o reflexo de seu rosto amedrontado e do palhaço demoníaco atrás de si.
 Ele a segurou pelo pescoço e ela não gritou a pedido dele. Lágrimas manchavam o rosto do palhaço enquanto ele deslizava seu braço direito até sua bolsa, de onde tirou o pedaço quebrado de espelho e o pressionou contra a garganta da princesa. Mendy tentou dizer alguma coisa, mas o palhaço não queria mais ouvir sua voz e cortou-lhe a garganta num só movimento, aplicando força suficiente para dispersar sangue real sobre toda a penteadeira, além de deixar um talho em sua própria mão.
 Triste, o palhaço deitou o corpo de sua amada na cama próxima e a beijou. Seus lábios ainda estavam quentes. Antes de sair, apagou as velas e quando se virou de volta para a janela, a imagem de Mendy iluminada pelo luar, sorrindo e o observando de dentro da tela sobre o cavalete o assustou. Olhou de volta para a princesa degolada e reconheceu que apenas seu monstro havia morrido, a bela inocente que ele um dia conheceu estava bem ali, sorrindo para ele. Tomou o quadro em mãos, surpreendendo-se com sua leveza, desceu com cuidado de volta ao pátio externo do castelo e desapareceu.

 O circo partiu logo pela aurora, muito antes do corpo de Mendy ser encontrado. Num dos vagões estavam Jules e Du, retomando os eventos da última temporada do circo. Preciso lhe contar algo Jules, me encontrei com aquela princesinha ontem a noite. Aquelas pontes no jardim contam histórias meu amigo! Jules o encarou e mostrou-se indiferente aos comentários. Sabia que o monstro de Mendy estava morto, e que seu verdadeiro amor não era a vadia referida por Du, mas sim a bela sorridente no quadro, que lhe mostrava todas as manhãs sua pura inocência de princesa.

Passado presente

Eu estava parado diante de uma placa com meu nome e admito que não imaginava que veria isso em vida. Uma homenagem de um dos meus alunos fez erguer o complexo arquitetônico Professor Roberto Alves. Era irônico, afinal, eu havia reprovado este tal aluno e ele nunca terminara o curso. Poucos anos depois ele entraria para a política e se tornaria deputado seguindo os passos do pai.Enquanto ele discursava em minha honra e agradecia os colegas políticos ali presentes eu pensava se havia alguém ali inteligente o suficiente para perceber o sarcasmo e a ironia das palavras dele. Enquanto eu tentava sair do meio da multidão concentrada no Hall a voz dele bradava das caixas de som chegando aos meus ouvidos. Um aplauso estrondoso se seguiu e eu disse num sussurro: "Parabéns André, você se tornou um imbecil bastante influente."Queria aproveitar ao menos um pouco daquela idiotice e me dirigi ao buffet de frios.
Uma pequena caminhada de poucos metros, mas ainda assim apta a gerar surpresas.Uma surpresa na forma da mulher mais linda que já pus os olhos, com um caminhar tão hipnotizante e suave que parecia se mover fora daquela situação tão monótona.
Fiquei tão fascinado por ela que por alguns instantes não percebi que ela vinha também em minha direção. O vestido negro se balançava como uma brisa num movimento que trazia mistério ao caminhar, mas que não era capaz de esconder as curvas de seu corpo. O decote na parte superior deixava nus apenas o ombro direito e os braços revelando a brancura da pele de quem não gosta de se expor ao sol. No ombro esquerdo havia uma rosa de seda, negra como o vestido contrastando e destacando o suave rosto.
Ela me estendeu a mão:
- Professor Roberto, faz tempo que queria lhe reencontrar.
De perto pude olhar mais atentamente seu rosto. Era de uma beleza rara, como se tivesse sido pintado por um dos mestres da renascença. Seus cabelos loiros ondulantes pareciam refletir a beleza de um anjo ou de uma deusa antiga.
- Desculpe, mas acho que não me lembro de você.- Respondi.
- Pensei que não se lembrasse. É um mal dos homens inteligentes terem má memória para certas coisas mais triviais.
Eu sorri. Ela também. Parecia haver alguma ligação entre nós. Normalmente enquanto converso com uma bela mulher costumo olhar para seus olhos, mas assim que ela sorriu fiquei encantado. A ultima vez que isso havia acontecido, foi um pouco antes da minha vida começar a mudar.
Ela me convidou a sentar e juntos conversamos durante toda a noite. Apesar de meus pedidos, ela não me disse seu nome. Misteriosa, disse que se eu não me lembrasse dela só teria a resposta depois que ela se divertisse. Falamos de nossas carreiras, de nossas famílias e de nossas ambições. Tudo sem nomes para que segundo ela, isso não me ajudasse a lembrar. Eu sabia que não devia falar tanto a alguém que não conhecia, mas ela não parecia estranha, e o que eu tinha a perder realmente. Me sentia como se a conhecesse.
Ela me perguntou se eu já havia me casado.
- Por que a pergunta? Pareço velho demais?- Retruquei.
- Não por isso. Mas eu já te conhecia, ou se esqueceu.
- Se já me conhece deve saber a resposta. Você está jogando comigo?
- É claro que estou, depois que eu me divertir um pouco te contarei quem sou. Mas gosto de ouvir histórias, mesmo que possa já saber como elas terminam. E não digo que sei.
Eu sorri, apesar da postura e da beleza de uma mulher madura, ela parecia ter alma de criança. Tudo parecia mais simples perto dela. Eu disse isso e comecei a contar a história da minha esposa:
- Seus olhos me lembram os dela. Não pela cor ou pela forma dos olhos. Mas pelo jeito forte de olhar. Me apaixonei por ela através desse olhar...
- Estou em perigo então? - Ela perguntou.
- Certamente, mas acredito que eu esteja em maior. Para a Márcia, bastava um olhar para que eu fizesse qualquer coisa que ela quisesse.
- Como você a conheceu?
- Fomos apresentados por um amigo ainda na faculdade. Não tive muito trabalho para convencê-la a me beijar pela primeira vez, afinal, éramos muito jovens e não levamos a sério o que tínhamos a princípio. Foi só depois que ela terminou comigo que eu passei a dar valor naquilo que eu tinha.
- E o que era, Roberto?
- Alguém decente que sabia valorizar a verdadeira dedicação. O amor pode até ser tratado como uma coisa juvenil, mas deve-se ser muito maduro para realmente vivenciá-lo.
Menti enquanto dizia isso. Na verdade me considerava um homem pouco apto a falar de amor, no fundo estava apenas tentando parecer um homem mais atraente através da minha sensibilidade. Agora vejo o quanto fui tolo, caindo como um adolescente dentro dos jogos de sedução de uma mulher muito mais jovem do que eu. Até hoje me pergunto o que ela teria vivido para saber conduzir tão bem um homem.
Independente da resposta que hoje eu desejo, naquela noite ela me levou a imaginar meu passado vivo em minha alma. Seu sorriso, que lembrava tanto o sorriso com o qual Márcia me presenteou quando aceitou se casar comigo. Era como ver minha esposa jovem de novo, mas com a força e imponência que só adquiriu depois de se tornar uma mulher feita.
A mulher misteriosa se levantou e seu vestido balançou magicamente de novo, enquanto um garçom passava por nós percebi que ela não hipnotizava apenas a mim. Notei novamente que estava diante de uma verdadeira deusa, mas agora minha admiração surgia de uma forma diferente dentro de mim. A chama de desejo deu lugar à uma pedra que começava a doer em meu estomago.
- Me acompanha até meu carro? - Ela me perguntou sem olhar em meus olhos, assenti que sim e me pus a andar pelo salão ao seu lado.
Estava mais próximo dela agora então podia sentir seu perfume. Um leve aroma floral mas com algum acréscimo artificial. Não parecia ser algo tão requintado.
Comecei a pensar em como aquela noite terminaria, e admito que meus pensamentos foram no mínimo carnais. O silêncio imperou por alguns instantes até que ela perguntou, quebrando minha linha imaginária:
- Teve filhos com a Márcia?
- Ah, Não. A Márcia não pode ter filhos. Infelizmente, devido a uma doença quando tinha 22 anos, ela teve que retirar o útero.
- Entendo. Mas depois que se separou dela? Nunca...?
- Tive algumas mulheres sim, mas não para serem mães. Isso é importante demais.
- Seu tom de voz mudou. - Ela disse de forma concisa.
- Como assim?- Perguntei.
- Não parece mais tentar me convencer do que está falando.
Admito que ela me atingiu com esta frase, nunca pensei que uma mulher mais jovem que eu estivesse tão a minha frente no jogo da conquista. Comecei a pensar que ela estivesse jogando comigo. Ela continuou:
- Então, imagino que preze por boas companhias. Tem família por perto?
- Não, uma pena que não. Minha família vive em Manaus, bem longe para que eu possa visitá-los com frequência. A família de Márcia que mora aqui por perto. Sempre convivi com eles.
Saímos do salão e caminhamos pelo jardim, queria mudar de assunto, perguntar o que ela iria fazer depois dalí. Mas sentia um incomodo no estomago, ela continuou a me interrogar.
- E como é a família dela?
- Bom, os pais sempre foram ótimos. Antes do pai dela falecer eu sempre ia na casa dele. Mesmo depois da separação. Ela tinha um primo que vivia com eles e que também já faleceu em um acidente de moto.
- Mais alguém? Não parece ser uma família grande.
- Ela tinha uma irmã. Mas nunca a vi, a não ser em uma foto dela ao lado da Márcia quando eram crianças. Ela foi para a França antes que eu conhecesse minha ex-esposa e as fotos dela foram perdidas em um incêndio poucos dias antes de eu pedi-la em namoro.
- Que história interessante, se não fosse seu tom sério pensaria que está brincando comigo. - Ela disse.
Chegamos ao carro, ela pegou as chaves e as levou a tranca da porta. Ao tocar nela sentiu o frio da noite que estava impregnado no carro. Rapidamente ela levou as mãos próximas a boca e com um sopro suave aqueceu os dedos. Minha ex-esposa fazia o mesmo.
A sensação dentro de mim cresceu de súbito, se tornando exatamente a sensação de levar um soco na barriga. Me lembrei de vários momentos que há muito havia trancado no fundo de minha mente.
Olhei para a frente, a porta do carro estava aberta e a dama parada olhando para mim.
- Gostaria de ir comigo? - Ela perguntou.
- Não acho apropriado. - Respondi.
Ela não recusou, nem se expressou. Apenas sorriu, e foi embora.
Hoje, sinto-me diferente. Depois de abrir um envelope que chegou pelo correio e receber aquela mesma foto onde estão minha ex-esposa e de sua irmã. Nunca havia dado atenção àquela foto, senão perceberia que as irmãs tinham o mesmo sorriso. No verso havia uma frase interessante, ela me dizia que eu a tinha convencido e que ela estava errada. Que sempre havia uma esperança e que a irmã dela nunca soube o que queria de fato. Eu sorri depois de ler, pensei em pegar o telefone mas já estava atrasado para o trabalho.
Quando contei aos meus alunos sobre o ocorrido, eles me disseram que em tempos de internet e computadores nos celulares isso nunca aconteceria. Eu respondi que isso tiraria toda a graça de um bom conto. No fundo da sala um garoto virou os olhos e voltou a ouvir música em seu fone, não tenho dúvidas de que ele se tornará alguém muito influente.

A Namorada que Nunca Beijei

 Mesmo depois que me mudei, o conceito de novas oportunidades numa nova cidade nunca foi o bastante para me animar. Era um fim de tarde agradável, mas tudo que eu realmente queria era virar a rua Minas Gerais em direção ao meu apartamento.
 Rumores vindos de todos os cantos julgavam tal professora de história perversa. Como não queria arriscar um ‘zero’, seria melhor sim, cair na conversa dos colegas e ir correndo para a biblioteca pesquisar sobre aquele trabalho complicado, do qual o tema eu não me lembro exatamente. Por falar em lembranças, foi naquela mesma noite que conheci minha verdadeira oportunidade na cidade nova.
 No caminho, estava do meu lado e, não me lembro o motivo, arranhou meu braço sutilmente, numa demonstração de suas unhas feitas. Disse a ela que aquilo me excitava e ela respondeu com uma careta. Que mancada! Meu segundo contato, não menos desastroso, foi um piadinha com a estatura dela; ela pode não ter gostado muito, mas eu estava feliz por haver conseguido ao menos arrancar daquele rostinho um sorriso forçado. E parecia uma estranha ligação. Ela estava aonde eu ia, e não importava aonde ela fosse, meus pés também me guiavam até lá. Quanto ao trabalho de história, creio que alguém tenha dado o devido progresso à ele.
 Já era noite quando descemos de volta pela 7 de Setembro até o ponto de ônibus onde ela partia.  O assunto rendeu acerca de filmes e seriados, e ainda hoje, quando assisto Heroes me lembro dela. Voltei pra casa me sentindo um idiota. Durante muito tempo eu vinha planejando uma maneira de me achegar até ela e agora eu estava ali, andando e devaneando. Sua voz ecoava na minha cabeça e permaneceu até que peguei no sono.
 As semanas seguintes foram de grande progresso virtual. Trocamos nossos endereços eletrônicos e a conversa durava horas, sempre que possível. No colégio, eu ainda não ousava muito, talvez porque havia reparado na grossa aliança que ela usava, ou apenas pela precaução de não estragar o que já havia se tornado importante demais. Do meu apelido, ela usava apenas a primeira sílaba; já eu gostava do nome dela, e do sobrenome também; eu o repetia para mim mesmo até me convencer de que ela era real e estava bem ali, conversando comigo.
 Eu me animei. O tempo passou rápido e aquele sentimento crescia, a cidade estranha se tornou “minha cidade” e ela o meu ponto de equilíbrio. Era ela que ouvia minhas queixas, lia minhas histórias, guardava meus segredos e me entendia por completo. Vez ou outra ela dizia que eu era o amigo perfeito, quando na verdade eu apenas escolhia bem minhas palavras para lidar com ela, e evitava ao máximo minhas peculiares mentiras. Se fosse feita uma lista de pessoas para quem eu nunca menti, ela estaria lá.
 O medo de conhecê-la sumiu e tornou-se o prazer diário de estar com ela, e ainda que as amigas a roubasse de mim, eu sempre estava em algum lugar, observando...
 Lembro-me de uma vez em que apareceu sem aquele anél maldito. Eu não me contive em perguntar, mas a resposta não foi nada estimulante, ela apenas o esqueceu em algum lugar. Quem era ele? Quem era o triunfante que namorava aquela garota? Ele existia, mas nunca se mostrava, e ela sempre se queixava dos seus ciúmes. Tive um pouco de medo, mas o medo de vê-la longe de mim era muito mais forte. Quando por fim, o namorado dela apareceu, interrompendo uma agradável conversa na porta do colégio, houve um frio no meu estômago, tão frio quanto a relação desgastada daqueles dois. Durante muitos dias pensei em permanecer um eterno amigo e não tentar nada além, me coloquei no lugar daquele rapaz e pude perceber o que ele estava perdendo aos poucos – ou já havia perdido há muito tempo.
 Com o fim do ano, vieram meus últimos momentos naquela cidade encantadora. Estava decidido, mas antes de deixar tudo para trás (de novo) eu precisava resolver o que tanto me incomodava. Eu a chamei para uma conversa particular, contei a verdade sobre como havia chegado ali e minha imensa alegria de ter conhecido alguém como ela. Cheguei até minha despedida e, sem muito demorar, ao meu profundo sentimento, que agora estava explícito e enterrado, pois era em vão.
 Um silêncio profundo inundou as semanas seguintes. Ela sabia. Me senti um tolo por não ter dito antes, mas de que adiantaria? A aliança ainda estava lá. Conversamos pouco neste final, eu disse algo sobre os dias em que eu iria embora e uma música que sempre ouvia pensando nela; em todas essas breves conversas ela lamentava a minha partida, e eu odiava esses momentos.
 Poucos dias antes do fim das aulas, eu já havia me acostumado com a nova realidade. Entretanto, para minha surpresa, ela decidiu desabafar. Então li uma longa história de um namoro frustrado, tomei suas dores e demais sentimentos, até que eles tocaram em mim. Enquanto aquele cara carregava o título de namorado, fui eu quem ouviu o que ela tinha para dizer e não tinha coragem, era eu quem guardava seus segredos como se fossem os meus, e também era eu um dos poucos que conhecia sua vida por inteiro, dentre coisas simples a outras complexas demais para um namorado entender. Era comigo que ela se sentia segura, brincava e ria do mundo sempre que queria, pois era comigo que ela sorria e tinha liberdade.
 Eu chorei. Chorei como havia prometido jamais chorar por alguém. Então, com o rosto surrado em lágrimas percebi que não haviam motivos exatos para isso, pois pouco faltou entre nós, um beijo talvez. Agora, mesmo estando longe, eu me lembrarei da sua pequena estatura, seus cabelos lisos, seu olhar inocente e sua voz encantadora. Me lembrarei de sua fantasia de índia para o trabalho de teatro e das fotos que tiramos vestidos de palhaço, acompanhados de um fofo peixe de pelúcia. Daqui eu me lembrarei da menina que acreditava em anjos e queria voar. Minha baixinha preferida. Do bom amigo que fui, para a namorada que nunca beijei.

Um sorriso nas cinzas

Passava da meia noite no centro de Salvador, o trânsito e os bares nas proximidades da Avenida Tancredo Neves ainda mantinham um ritmo pulsante. Mas, no nono andar do edifício Luís Magalhães havia um relativo silêncio. Naquela noite quente de verão, eu estava deitado em meu quarto no apartamento 903. Me lembro que olhava para cima já admitindo minha derrota para a insônia. Fazia alguns dias que estava ansioso. Hoje, um amigo me disse que era normal, afinal no dia seguinte pediria em noivado aquela que estava ao meu lado há três anos. Não é algo se faça todos os dias. Temi dizer a ele que não era exatamente isso que me preocupava, embora houvesse certa ligação.
Levantei-me da cama, retirei de sobre o guarda-roupa uma caixa e de dentro dela alguns papéis e uma fotografia que estava no fundo. A imagem trazia uma versão mais jovem de mim, abraçado a uma linda garota que sorria na sombra de coqueiro, a praia era vista ao fundo e o céu estava pintado de poucas nuvens. Um cenário lindo que transmitia felicidade, mas não tanto quanto os nossos sorrisos.
Mas, obviamente aquela não era minha futura noiva. Era na verdade uma lembrança da minha mocidade, na época em eu pensava ser capaz de conhecer e reconhecer o verdadeiro amor. Mas devo admitir que ainda traga comigo as lembranças daquele sorriso meigo e o sabor de seus beijos sinceros na memória. E na minha recente situação, não era condizente. Era hora de deixar qualquer lembrança para trás e começar a construir o meu futuro ao lado de quem o quisesse.
Então, peguei a foto e os papéis, no alto deles estava escrito meu nome em uma dedicatória. Cartas que também deveriam ser apagadas. Andei até a varanda lentamente, coloquei os papéis no chão e sobre eles a fotografia, em poucos minutos os queimei. Enquanto as cinzas subiam no ar, vi o sorriso mais lindo que conheci se desfazer na brasa e então dormi tranquilo por toda a noite.
No dia seguinte me arrumei, estava mais apresentável do que de costume. Usei meu melhor perfume e um terno novo sobre uma camisa de marca. Encontrei-me com minha namorada em um restaurante. Trazia no bolso do paletó a caixa com o anel. Tudo estava perfeito.
Mas antes que eu pudesse fazer o pedido ela me disse que tinha que me dizer algo. Disse que estava confusa e que precisava de um tempo para pensar. Eu consenti. E assim ela pensou por alguns dias e por fim reatou com um namorado da faculdade que havia voltado à cidade há alguns meses. É claro que virei motivo de piada quando contei esta história aos meus amigos de barzinho. Mas não me incomodei, até ri junto com eles. Afinal, hoje tenho muito mais noites calmas.

AVASSALADORA

Era lá para o mês de setembro e eu me lembro como se fosse ontem, aquele calor, aquela secura que era o ar por aquelas bandas de Goiás. Como eu amava aquelas terras, aquelas pessoas. Uma mistura de sangue e suor, índio com branco, nosso Brasil.
Passei grande parte da minha vida lá, alguns momentos difíceis, fome, calor, doenças. Mas inegavelmente são essas coisas que ajudam a fortalecer o caráter, a formar a história do homem. Não sei, penso assim talvez tomando exemplo de meu pai, homem grosso, bruto, mas totalmente honesto e trabalhador.  Naqueles tempos era preciso ser forte para sobreviver, e eu não era. Sempre fui molenga, vítima das injúrias causadas pelos meus amiguinhos, e até por meus parentes. Era magricela, sem muita aptidão para o gado, desajeitado com os ofícios do metal, um traste. Mas como sempre fui assim, nunca me importei. Aprendi com o padre Inácio que Deus é justo e que sempre teremos aquilo que precisamos, nem mais e nem menos. Paciente e esperançoso, eu esperei.
Apesar de todas as boas coisas da infância, da família, não são por estes motivos que retorno minha mente para as chapadas de Goiás. Não, definitivamente não é por isso. O que trouxe de lá na verdade foi meu primeiro amor, um primeiro sopro de vida naquela que era quase desgraçada. Me pego sempre pensando lá sim, mas não para a minha terra de origem, mas sim para Antônia. Na verdade, acho que a única coisa que me faz lembrar com nostalgia para o centro-oeste é a sombra das lembranças que eu tenho ao lado de Antônia. Aquela coisa mágica, uma distração fatal, que transforma a realidade penosa, em fardo leve. Tal como os bêbados que quando passado o torpor do álcool, ele volta para sua realidade, volta trazendo os pesares de sua vida, é assim que eu me vejo. Antônia me entorpeceu, e fez de mim, um cara qualquer, seu amante.
Eu tinha quatorze anos naquela época e estava em casa. Sem camisa, deitado numa rede, sem mover um músculo, eu escutava minha mãe cantando na cozinha enquanto preparava o almoço que em breve eu levaria para meu pai. Minha mãe era uma mulher gorda, que mesmo com seu corpanzil conseguia mover-se com graça e sempre fez meu pai muito feliz. Quando jovem eu pensava que somente uma mulher gorda poderia me fazer feliz. Ela gritou dizendo que a marmita estava pronta. Já havia colocado a comida simples no pote de barro. Saltei da rede, peguei a comida, e saí desembestado pela rua de terra. Descalço, suado, com os cabelos escuros colados no rosto, eu fui ao encontro do meu velho. Atravessei o vilarejo e andei mais um pouco através de alguns pastos. Perto do gado eu vi meu velho, de gibão e botas. Chapéu e berrante. Meu herói. Ele conversava sério com outro homem, este eu não conhecia. E ele me pareceu tão esquisito. Diferente de tudo o que eu já vira. Alto, com o rosto todo sujo de pequenas bolinhas, e seu cabelo era laranja. Aquilo não era normal, onde já se vira alguém com cabelo alaranjado?  Não questionei, entreguei a marmita e quando já ia sair meu pai me chamou.
-Volte aqui moleque. –disse ele em tom normal - Este é o meu filho, Zé. – Zé era o ruivo.
O homem me olhou e sorriu largamente. Eu não entendi, mas parecia que na minha esquisitice ele viu algo de bom, e então o Zé falou.
-Tudo bem menino? – ele falava diferente de meu pai, fala baixo, com clareza – Vou te apresentar a minha filha, ela ainda não fez nenhum amigo. Quem sabe você não mostra as redondezas pra ela?
Eu nunca senti tamanho desânimo na minha vida, não bastava os trabalhos impostos por minha mãe eu ainda teria que ficar mostrando a cidade para uma forasteira. O meu dia não poderia ficar pior. E para completar meu pai ficou me observando, esperando que eu confirmasse a misera tarefa. E em respeito a ele acenei com a cabeça.
-Ótimo, ela se chama Antônia, nós nos mudamos para onde morava o Sr. Venceslau. Vá. Vá encontrar-se com ela. E veja bem o que fará com a minha menina, respeito! – e nesse ponto ele falou sério, olhando-me de cima para baixo.
E o que ele pensou que eu faria? Nunca, nenhuma menina da vila ou das redondezas quisera nada comigo, eu era magro e inútil. Todos meus “colegas” já eram vaqueiros, e ficavam mais fortes a cada dia. Não, o Sr. Zé poderia ficar tranquilo. Saí desanimado para voltar à cidade.
O sol da tarde estava mais forte, então passei em casa e vesti um jaleco de pano leve. E tomei o caminho para casa do Sr. Venceslau. Por que o velho tinha que morrer? Agora no lugar do tão agradável Venceslau eu teria uma família forasteira, aparentemente de hábitos estranhos, e o pior, uma filha que iria me esnobar. Perfeito.
Quando eu estava me aproximando da casa, vi uma mulher magra e alta sentada à porta. Essa não tinha os cabelos laranja, mas sim amarelo. Menos estranho um pouco. Ela parecia entretida com o movimento das carroças, das lavadeiras que após terminarem de fazer o almoço para seus maridos retornariam ao serviço, tudo fascinava aquela mulher. Eu sem jeito, meio encabulado, me aproximei. Ela deixou cair seu olhar sobre mim, e eu nunca vi olhos azuis tão intensos. Era o céu e o mar dentro de dois orbes. Ela sorriu para mim, mostrando seus dentes tortos e amarelados.
-Olá menino, quer alguma coisa? –murchei-me como fazem os cães, e olhando para baixo a respondi.
-Sr. Zé me pediu que mostrasse as redondezas para sua filha, Antônia.
A mulher soltou um gritinho agudo de alegria e se colocou de pé num salto.
-Antônia! –berrou a senhora bem na minha frente. –Venha minha filha, rápido!
Da penumbra da casa apareceu ela, a menina Antônia. Ela era linda, nunca vi tanta beleza em minha vida. Os olhos claros, aquele azul, como o da mãe. Os cabelos pálidos caiam-lhe sobre os ombros. Devia ter uns treze anos, mas seu corpo era de menina mais velha, colo grande, seios rijos. Vendo-me a garota lançou-me um olhar indescritível, olhar de predador, de quem descobre pedra rara no próprio quintal. Mas fora tão intenso quanto rápido, em questão de segundos desfez-se de seu semblante e perguntou a sua mãe.
-O que foi mamãe? –ela tinha a mesma calma do pai, uma educação rara por ali.
-Este menino veio a pedido de seu pai. Ele se chama...Como você se chama? –disse a mãe percebendo a indelicadeza de não perguntar o nome e nem de se apresentar.
-Lucas. –disse recorrendo a alguma coisa interessante no chão. Sem me dar conta eu ainda estava olhando fixamente para a jovem Antônia.
-Eu sou Andresa, e essa é minha filha Antônia. –diferente do que Dona Andresa esperava, eu não disse “prazer em conhecê-la”, para sua decepção.
-Veio a pedido de meu pai fazer o que? –perguntou ela diretamente a mãe ignorando completamente a minha presença.
-Mostrar-lhe a cidadezinha e as suas redondezas.
-Ah...-disse ela parecendo desanimada.
-Agora vá, e me conte tudo depois!
A menina passou por mim e disse um tchau para sua mãe sem olhar para trás. Foi andando.
-Tchau Dona Andresa. –disse eu antes de sair correndo para alcançar a garota.
O passeio começou pela cidade, eu mostrei a ela a padaria, a igreja, a escola, o hospital, a prefeitura. Contei sobre o padeiro Olavo, sobre padre Inácio e o prefeito Bastião. Ela não mostrou interesse por nada. Ignorava-me quando perguntava alguma coisa sobre ela, como da onde veio, ou sobre o que gostava de fazer. Fazia como as outras meninas, me ignorava. Por vezes cruzávamos com alguns garotos e ela sorria maliciosamente para eles, e em seguida voltava-se para mim com alguma pergunta sobre os garotos dali. E eu a frustrava, não sabia as respostas. Na verdade nem entendia as perguntas. Com uma hora de passeio eu já tinha perdido toda a excitação que tivera com o primeiro encontro.  Era como se eu nem estivesse ali. Todos na cidade nos viram andando juntos, mas como era eu quem estava ao lado, logo perceberam que não era nada além de um passeio desinteressante. E isso fora de verdade, tão desinteressante quanto poderia ter sido.
Logo que acabei de mostrar-lhe a cidade, disse que tinha ainda a serra, os pastos, e a cachoeira para irmos. Ao falar da cachoeira seus olhos brilharam. Afinal, ela também estava com calor. Seu vestidinho costurado a mão estava quase todo molhado de suor, e o cabelo cor de palha estava já preso em um rabo de cavalo, tudo para amenizar o calor.
Sem escolha eu parti, levei a garota por entre a pequena mata que se formava nas proximidades da cachoeira.  Agora, longe da cidade, ela parecia mais natural ao meu lado. Conversamos um pouco, me disse que viera de Minas Gerais, de Belo Horizonte, não que eu já tivesse ouvido falar, mas me pareceu interessante. Ela disse que não estava muito feliz com a mudança, mas que o pai herdou de seu avô as terras e veio para cuidar delas por aqui. Naquele momento eu já não me importava mais com o fato de ter sido ignorado, ou de que ela era apenas mais uma que me colocaria num canto qualquer. Antônia era uma daquelas pessoas irresistíveis. Ela tinha o papo leve como o vento, enevoava todos á sua volta. Não existia pessoa que não gostasse dela, apenas algumas mulheres que se sentiam ameaçadas de alguma forma por ela, mas até estas se forçavam a não gostar. Ela era linda, simpática, conversava gostoso, tinha um corpo sedutor, e o seu sorriso combinado com o olhar nos colocam como vassalos aos seus pés. Sim, ela era avassaladora.
De esnobe e distante, Antônia se transformou em moleca e sapeca. No caminho me contou sobre Belo Horizonte e de como a vida lá era animada.  Disse que tinha muito dinheiro, e que isso lhe propusera inúmeras regalias. Naquele momento eu não entendia nada sobre dinheiro, e nem me importava com isso. Eu queria era poder ouvir infinitamente a sua voz, e poder observá-la sem interrupção.
O som dá queda d’água se fez nítido, e seu olhar se desviou por um instante da trilha para os meus olhos. Nós nos entreolhamos e por fim ela sorriu.
-Eu adoro nadar, o último a chegar é a mulher do padre. –e saiu correndo loucamente dando risadas.
Instintivamente eu disparei atrás da menina, mas ela era rápida, e eu não consegui chegar a tempo de falar nada, quando estava próximo o suficiente para ver a queda ela já havia pulado. Tibum!
Aproximei-me receoso da beirada da queda, e lá em baixo estava ela toda empolgada com a água fria, que naquele dia quente era um alento para o corpo. Preocupado eu gritei:
-Você esta bem?
-Pula logo seu medroso! Vem nadar comigo. –mas eu tinha medo, eram dois metros de queda, eu temia por me machucar, e não pulei.
Contornei a queda e a encontrei nadando em círculos na bacia que se formava ao pé da queda. Ao me aproximar notei seu vestido todo molhado, amassado, jogado a margem do rio.  Ao perceber que eu olhava confuso para a roupa no chão ela se ergueu da água. E eu vi seu corpo seminu. Era primeira vez que eu olhava para algo orgânico com desejo, ainda aturdido com a situação eu fixei meus olhos em seus seios rosados, duros, em pé como se a gravidade ignorasse as jovens donzelas. E após perceber o que estava acontecendo tampei meu rosto instantaneamente, com vergonha, embaraçado.  Sentia um rubor percorrer-me o corpo, nunca me sentira assim, talvez quando na hora do banho me tocava, ou em algumas manhãs esporádicas. Ela estava ali, apenas de calcinha e eu não fazia idéia do que exatamente estava acontecendo.  Sua voz agora já não me chamava, eu ouvi apenas uma risada, da qual eu não soube distinguir entre deboche ou espanto. O fato é que após eu tampar meu rosto senti aquela massa molhada recostar sobre meu corpo quente. Seus seios comprimidos contra meu peito descoberto, quanto de súbito eu senti seus lábios sobre os meus. No susto eu a empurrei violentamente, que diabos ela pensava que estava fazendo?  Abri os meus olhos para a realidade, e o que eu vi não me esqueço jamais. Antônia séria, espantada com minha reação. Sentia-se rejeitada, estranha. Pegou sua roupa e a vestiu daquela maneira, molhada, suja. Sumiu em meio à mata. Eu ainda estava atônico, e não consegui segui - lá.
Aquela noite eu não dormi. Eu sempre soube da minha condição inútil, mas aquilo era demais até para mim. Não queria dormir, Antônia não merecia aquela minha reação, eu tinha que me redimir. Como ninguém nunca esperava nada especial de mim, não existia repressão por nada que eu fazia. Vesti meus farrapos, e saí silencioso, sem acordar ninguém.  Saí para rua me sentindo renovado, sentia-me diferente.
A cidade de noite era morta, habitada apenas pelo som das aves e do coaxar dos sapos. Mas eu a conhecia, e não tinha medo. Passei pela escola, vi a delegacia toda apagada, a prefeitura. Ouvi até mesmo o ronco de algum bêbado caído ao chão. Mas não parei. Fui até a antiga casa do Sr. Venceslau. Estava a sua porta. O que fazer? Não sabia, senti-me impotente novamente. Mas antes que o desânimo se apoderasse de mim, dei a volta procurando janelas. Procurando a sua janela. Na parte de trás da casa, encontrei a janela de Antônia aberta, e pendurado no parapeito pude vê-la dormindo.
-Ei, Antônia. –sussurrei alto.
Ela não estava totalmente adormecida, e ao me ver na janela não se assustou. Estava séria, aborrecida. Os olhos estavam marejados.
-O que você quer? – perguntou ríspida.
Eu não sabia ao certo, mas o que seguiu parece ter-la satisfeito.
-Eu quero você. - Seus olhos brilharam, e aquele sorriso, o sorriso que tanto me conquistou estava lá novamente.
Ela saltou a janela e me seguiu rumo a serra. Não dissemos uma palavra no caminho escuro, iluminado pelo luar.  Deitamos na grama. Eu magro, fraco, inútil, sentia-me forte e vigoroso. Acariciei sua pele, beijei sua fronte. Tremia, ofegava. Não entendia o que estava acontecendo, o que era aquilo, mas aquilo me envolveu. Envolveu-nos. Sentia meu corpo cavernoso se enrijecer, e os beijos da donzela eram infinitos. Todo o amor que existia no mundo estava para mim. Eu não sei o que eu disse para ela, não me lembro. Só consigo me lembrar que estivemos juntos até que o primeiro galo cantou, quando no susto, corremos para nossas casas, cansados, fatigados de nosso amor.   Não nos despedimos.
Eu dormi até a hora do almoço naquele dia, e minha mãe se preocupou. Pensou que eu estava adoentado, disse que fora a água fria da cachoeira, não me deixou sair de casa. Não vi Antônia naquele dia.
No segundo dia, levantei cedo e mostrei toda minha saúde para minha mãe, comi bem e disse adeus. Corri veloz para chegar à casa da minha amada, com sorriso no rosto, eu já não era aquele magricela inútil. Eu era um homem desejado. Bati a porta, e fui recebido pelo Sr. Zé, que me disse que a filha havia saído a pouco para buscar pão. Agradeci pela informação e corri até a padaria. Chegando lá Olavo, o padeiro, me disse que a jovem não havia passado por lá.  Saí confuso, meio desolado.
Saindo da padaria ouvi gemidinhos abafados, risos doces. Dei a volta e entrei no beco, e para minha surpresa lá estava Antônia e um menino qualquer. Os dois estavam se atracando, se divertindo. Antônia transformava a vida de mais um garoto. Naquele momento esquisito, eu deveria ter sentido nojo, repugnância, raiva, mas não senti nada disso. Eu compreendi como uma luz. Eu vi quem era Antônia claramente.
Uma garota extremamente fácil de gostar. Plena de amor, e querendo repassar. Não tinha medo da vida, tampouco de viver. Sabia o que queria, queria ser feliz. Muitos podem pensar que ela era vulgar, promiscua, e confesso que seguindo a linha moral da sociedade ela não se enquadrava nos bons padrões. Mas ela não era nada disso. Jovial, simpática, quase inocente. Ela atendia sem pudor a vontade do seu corpo. Descobri que na vida existem pessoas assim, que simplesmente vivem as coisas. Elas existem para transformar as vidas alheias, para mostrar que o amor existe para qualquer um.
Eu não era assim, e não me tornei assim.  Nós continuamos amigos até o dia da minha partida. Por vezes nos ficávamos juntos, nos amávamos. Fazíamos o que sentíamos.Eu fui embora. Logo depois fora sua vez, adulta, queria atingir o mundo com o seu calor. Ela se foi deixando para trás pessoas felizes, sem muito do que reclamar.
Antônia era avassaladora, marcara minha vida, eternizara a minha Goiás! Mas não entendia naquela época o porquê dela não ser gorda, afinal eram apenas as mulheres gordas que poderiam me fazer feliz. Não, não eram. Quando adulto entendi que minha mãe fazia meu pai feliz não por ser gorda. As mulheres nos fazem felizes de maneiras obscuras.
Antônia não era gorda, e mesmo assim me fez muito feliz.





 
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