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Quem ama, vai a França

Admito que nunca soube muito bem quem eu sou nesse mundo. Sei sim que meus pais me chamaram Roberto em homenagem ao meu bisavô, me deram alguns nomes do meio para ficar sonoro e por fim o Fonseca para sacramentar minha origem gênica. Nunca pensei muito sobre meu nome e nem achei que me definia. Nunca me senti "Roberto", mas me senti sendo filho dos meus pais, eu sabia disso e nada mais. Ao longo desses 32 anos então fui chamado de coisas as quais nunca dei importância. Até que fui chamado de algo que pude entender e sentir, esposo. Fui muito feliz com essa definição, e no início achei cair muito bem. Me bastava me definir como filho e como esposo, todo o resto me parecia passageiro. Mas este último nos tempos recentes deixei um pouco de lado. Penso ser por culpa do ócio que me foi imposto pela briga infrutífera dos sindicatos com o governo, nessa queda de braço que se diz próxima de acabar mas que apenas prenuncia a próxima. Mas desta vez foi diferente, nos últimos anos eu me enterrei no trabalho deixando boa parte de minha vida nele. E voltar para casa agora me faz ver o mundo de outra forma. Acabei por ver que me distanciara demais da minha mulher a ponto de quase não mais fazer parte da rotina dela. Já não me sentia capaz de ajudar em seus problemas e nem de entrar em seus pensamentos. Não que estivéssemos nos tratando mal, longe disso na verdade, mas faltava algo. Talvez uma certa ternura ou intimidade e eu não parecia ter motivação para mudar nada.
Ela por sua vez estava sempre cansada. Se já não bastasse o cansaço físico e mental de uma engenheira de minas ainda se ocupava dos afazeres domésticos, já que eu me mostrei um desastre no lar logo no primeiro dia de greve e ela nunca aceitou uma empregada doméstica. Seu gênio forte afinal, não me deixava chegar perto apesar de sabermos que era necessário. Um impasse terrível.
Sem saber mais o que fazer, deixei ao diabo tomar conta da oficina e fui tomado de ideias várias, todas nocivas ao meu relacionamento.
Foi então que recebi um telefonema de um amigo. Valtercir Mendes, letrado e historiador que há alguns anos vivia na França realizando uma pesquisa financiado pela faculdade. Dizendo que me enviaria as cópias de um achado. Ele dizia que havia se impressionado com a história narrada por ele e que achava que alguém como eu logo a tornaria famosa aqui no nosso país. Não havia por que negar e no dia seguinte chegou a encomenda.
Admito que não sou tão bom entendedor do francês quanto meu amigo, mas não acho que tenha perdido muito pela minha tradução pautado em um pobre langue d'oc que mal domino. Apesar de não citar nomes, o longo texto parecia ser um diário  e aparentava ter alguns dias entre cada escrita. O texto era tão belo e o conto narrado tão perfeito que não admitiria ser real, embora seja nisso que quero e que vou acreditar. Li rapidamente, com algumas licenças  e adaptações, aquilo que um jovem sapateiro escreveu em algum lugar ao sul da Borgonha no século XIV e fiquei fascinado. Li novamente dando enfase em algumas partes que comecei a transcrever num pedaço de papel:

" Entendo que seja esta uma vida dura. Penso entender um pouco mais do que os outros. Não que sofra mais do que eles, mas entendo melhor. Não simplesmente por ter a chance de aprender desta outra maneira, mas principalmente por estar com ela. 
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Sempre me perguntam por que escrevo, alguns me perguntam como aprendi. Como passou a ser meu hábito registrar tudo contarei minha história para que possa me ligar à história dela. Meu pai gosta de caminhar próximo às muralhas pouco antes do entardecer. Para que ele nunca nos disse, mas conta que um dia enquanto andava pela relva seca ouviu um grito de menino seguido de rosnados. Correu na direção do som e encontrou um garoto se escondendo num buraco no chão cercado por dois lobos. Tomando um pedaço de madeira ele acertou um dos lobos e com alguns golpes os afastou dalí. Cuidou do menino por algum tempo até que soldados montados chegaram e ele foi levado para um acampamento onde foi interrogado. Nos dias seguintes fui avisado que receberia aulas de escrita e leitura em honra ao meu pai que havia salvo o filho do príncipe que caçava naquela região. Meu pai sempre dizia para minhas irmãs que por ter salvo o menino, havia me salvo também da ignorância.
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Era já uma época difícil, quando aprendi o ofício de sapateiro não pude tomar posse da profissão, mal havia comida e o Senhor não podia pagar por dois sapateiros. Trabalhava sem receber então, ajudando meu pai no ofício sem reclamar. Gostava daquilo. Mas tendo que fazer algo que mostrasse qualidades fui para a lavoura onde habilidade não é prioridade quando se tem força. Divida o tempo entre os dois trabalhos e meus estudos quando acabava por encontrar um livro nas redondezas do fosso deixados pelos filhos do Senhor.
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Passado um tempo, acabei por finalmente notá-la. Com seus cabelos cacheados que pareciam dançar com o vento. Ela carregava fardos de trigo sem reclamar e ainda assim parecia um anjo no meio da peste e da fome enviado por Deus para acalentar os corações do homens e nos lembrar que o céu ainda nos aguardava. Não me atrevi a falar com ela, na verdade mal falava com ninguém. Os livros ficaram escassos e não tinha mais moedas para trocar com os comerciantes que passavam pela vila vez em quando, então comecei a escrever estas mesmas palavras para ler de qualquer forma. Então, curiosa como deve ser um anjo na terra por saber do que se divertem os homens, ela veio até mim.
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Conhecê-la é como olhar as estrelas, como cantar milagres ou dançar comemorando uma boa colheita. Penso que ela tenha nascido por engano entre nós ou que use um disfarce. Seus gestos e pensamentos não condizem com os de uma plebeia, ela anda e pensa como uma princesa e conhece muito do mundo. Diferente de mim, ela não viveu sempre aqui e esta é a razão de eu nunca a ter visto por aqui. Seu pai era cambista e viajava levando-a com sua mãe e irmãos por castelos de todo o reino onde ficava por certa estação pesando as moedas. Por suas viagens ela havia conhecido muitos trovadores e iluministas que adoravam ensaiar suas falas diante da menina-anjo falante e curiosa. Mas um desejo ela nunca havia tido a chance de concretizar. Queria aprender a ler e escrever para registrar as ideias que tinha do mundo. Não podia lhe negar isso, uma vez que cada vez que conversávamos eu ficava sem fala. Eu que sempre me considerei sabido dentre os camponeses, agora me via diante de uma vida inteira de conhecimentos que nunca imaginara fora dos poucos livros que lí. Passei a encontrar-me com ela todas as noites para ter com ela.
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Com a sutileza de uma criança que se entrega pela mão, ela me permitiu ensinar as palavras e os seus desenhos e pediu-me que lhe deixasse retribuir. Como seu pai lidava com os valores e pesos das moedas, ela e os irmãos desde cedo aprenderam a matemática dos cálculos e isto ela queria me ensinar também. Muito pouco eu sabia sobre calcular, mas tentei aprender tudo de bom grado. Encontrávamos no alto da colina e nossos encontros passaram a durar mais e se estendiam até a hora em que a lua se põe alta no céu como rainha do estrelado. Eu dizia ao anjo que a luz da lua a deixava ainda mais linda do que durante o dia e ela pedia que eu não fizesse elogios, mas que esperasse pela sombra da lua. Quando a lua por fim se escondeu perto da estação da semeadura ela não apareceu na hora programada, eu caminhei pela colina e encontrei uma bela flor vermelha. Mal a colhera e o anjo chegou com um sorriso radiante. Recebeu minha flor e disse que com a sombra da lua ninguém nos poderia ver com perfeição no alto do morro e então, ainda olhando para o sorriso radiante, eu a beijei.
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Tamanha fora minha alegria estes dias que mal me atentei para escrever, mas com a dor que sinto agora e sem formas de a por para fora senão neste pífio pedaço de papel. De que me adianta escrever se nada posso fazer? De que me adianta todo o saber? Nós nos amamos, sempre que tivemos a chance nos amamos. Agora o príncipe a quer por esposa, e que farei eu se pertenço também a ele. Mas temo, que quando ele descobrir que ela não será dele decida matá-la. E eu o que farei. Nada posso fazer diante do martírio dela? Tenho apenas rezado, sem sequer coragem de contar ao padre o por que. Não confio mais no padre, mas confio no Cristo e sei que ele não permitirá que morra um de seus anjos. Se bem que ele próprio já morreu por uma causa, rezo para que não seja esta morte também divina.
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Está tomada a decisão, está tudo acertado com o anjo. Jogarei carne de perdizes nos portões do castelo e nos muros, a noite os lobos já estarão aqui. O príncipe ainda tem medo de lobos desde aquele fim de tarde, certamente ele enviará seu homens para matá-los e a deixará só por tempo suficiente para que saia do castelo como fez na noite passada. Partiremos pela colina ao cair da noite, na sombra da lua. Na estrada a família dela nos esperará e partiremos para um outro lugar onde nossas conversas noturnas tenham seu lugar. Estas cartas ficam então para vocês a quem dedico meu carinho e agradecimento por cuidarem de mim enquanto aprendia a ler e calcular. Que me protegeram e instruíram até que eu encontrasse meu anjo.

E assim terminou o texto, sem menção nenhuma ao resultado do plano. Esse fim aberto me deixou pasmo, teriam todas essas coincidências ocorrido para que no fim o jovem sapateiro fosse pego em seu plano e por fim acabasse morto como exemplo ou a sombra do luar teria dado aos amantes a oportunidade de encontrar outro feudo onde pudessem viver. Apesar de poder apostar, jamais saberia o fim do conto, uma vez que nunca haveria de ser escrito mas sim apenas vivido.
Enquanto devaneava no assunto, minha esposa entrou na sala já chegando cansada do trabalho. Olhei para ela e naquele mesmo instante uma ideia se apossou de mim enquanto ela soltava seus cabelos cacheados. Me sentem perto dela e perguntei como havia sido o dia dela. Ela respondeu de forma um tanto fria mas dessa vez não me aplaquei, entendia que era uma via de mão dupla e que eu deveria fazer mais para despertar aquilo que nós dois precisávamos. Coloquei as mãos em seus ombros e comecei a massageá-los. Ela estranhou, mas que mulher recusa uma massagem, ainda mais depois de um trabalho exaustivo. Disse que ela era o meu grande segredo e meu maior tesouro. Disse a ela que nunca esqueceria que era meu anjo, enviado por Deus para lembrar aos homens que ainda havia um paraíso nos esperando. Ela sorriu e disse que eu não falava muito de Deus. Eu assenti com a cabeça e disse que a amava, sentia despertar nela algo que estava adormecido em mim. Ela se virou na minha direção, suas feições sempre joviais retornaram à face e um sorriso maravilhoso se formou em sua boca. Era o sorriso mais lindo que já havia visto na vida. Perguntei à ela:
- Quer ir à França comigo?
 
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