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O Palhaço e a Princesa




 Jules despertou de um longo e confortável sono para mais um dia de trabalho no circo. Era um artista talentoso, e viril como qualquer atleta, mas sua real alegria estava em ser palhaço. Amava aquilo que fazia, e fazia muito bem, aliás.
 Logo que se trocou, puxou com cuidado a lona que protegia um quadro em sua tenda e saudou sua outra grandiosa paixão, dessas capazes de mudar um homem para sempre.



 Fora há algum tempo, numa noite abafada, que Jules conheceu Mendy. A mãe da garota conversava com o dono do circo, estava a procura de artistas que animassem o décimo quinto aniversário da filha. Quando Jules saltou no picadeiro mostrando-se o mais animado, acompanhado de Du, seu colega de palco, a princesa Mendy ficou tão encantada com a habilidade dos garotos e suas roupas bem trabalhadas, que logo insistiu para que a mãe os contratasse. Eles eram perfeitos!
 Para a rainha bem vestida não passava de algumas moedas, além da realização das fantasias de sua jovem filha. Du queria apenas se divertir, mas era Jules que explicitava um brilho diferente no olhar,  sentiu-se atraído pela beleza da princesa e não conteve um solene cumprimento. Mendy? - perguntou a mãe. E a princesa, bastante animada, acenou com a cabeça em aprovação.

 Com o avanço dos dias, Jules e Mendy se encontraram com certa frequencia, nos ensaios das peripércias de Jules e Du, ou quando o garoto armava situações inusitadas para ver sua amada. Tentava sempre uma aproximação mais íntima com a princesa, mas ela impunha limites à relação. No fundo, Mendy gostava da presença de Jules, mas nada sentia além daquele apreço. Nunca percebeu o real interesse do garoto e se esquivava sem culpa sempre que ele investia.
 Em Jules crescia o sentimento. Du o aconselhava a desistir, pois conheceu algumas damas da princesa e elas  lhe contaram sobre as escapadas reais de Mendy. Ela não é bem uma princesinha amigo... - brincava Du, mas Jules se negava a acreditar. Era Mandy seu mais doce devaneio. Adorava passar horas e horas pensando nela, e quando os viajantes bardos entoavam Minha Paixão, não havia nada como se imaginar junto dela ao som de tal composição. Ainda que tudo aquilo fizesse parte de um sonho não realizado, Jules estava feliz por ter alguém a quem dedicar sua atenção.
 Não demorou muito até que as primeiras crises aparecessem. Mendy contava a ele sobre suas aventuras infames com os jovens nobres do reino, e aquilo o deixava furioso por dentro. Era inaceitável que alguém compartilhasse do corpo e da atenção de Mendy que não fosse ele, ainda que do corpo ele nunca tivesse provado. Jules não permitia que a princesa notasse sua reprovação, e a aconselhava a deixar seus pretendentes de lado, pois eles não a mereciam. Mas ela insistia em seu erro, e declarava-se apaixonada demais para perceber o quanto sofria por amor.
 No dia anterior ao baile de aniversário, Jules presenteou a princesa com um belo corpete que comprará de uma cigana com todas as suas econômias. O abraço de agradecimento que Mendy lhe deu ficou guardado em sua memória para sempre.

 Na esperada noite, Jules e Du estavam esplêndidos em suas vestes verdes e vermelhas, repletas de rendas douradas, tanto que não pareciam palhaços, mas sim artistas mágicos vindos de terras distantes. O anúncio das trombetas silenciou a festa para a chegada da princesa, que se destacava em seu vestido negro perolado, descendo graciosamente o lance de escadas que dava acesso ao jardim do castelo onde morava, e também aonde a festa acontecia.
 As festividades atravessaram a noite mantendo sua majestade. À meia noite, todos os convidados ergueram suas máscaras para o baile e iniciaram a coreografia da crescente valsa. Observando enquanto se equilibrava numa grande bola, ao mesmo tempo que soprava fogo pelos ares, Jules percebeu o contato íntimo de sua protegida com vários convidados almofadinhas, e burburinhos vindos de todos os lados julgavam a conduta promiscua da princesa. Jules estava confuso. Não pode ser! Primeiro Du, e agora uma explosão de evidências tantavam provar que a menina dos seus olhos era na verdade uma adolescente rebelde e sem nenhuma decência. Perdeu o equilíbrio, mas evitou o pior, flexionou os joelhos e saltou por sobre alguns convidados, caindo com graça e segurança e afastando-se do ambiente infestado de máscaras sombrias. Por fim, cuspiu o álcool que queimava em sua boca e chamou Du para que fossem embora. Já fizemos o bastante por aqui. E permaneceu em silêncio durante todo o caminho de volta.

 Nas semanas seguintes, Jules procurou por Mendy, mas a garota desapareceu. Ouviu rumores de sua presença em alguns eventos, mas não conseguiu tempo hábil para encontrá-la. Mandou-lhe uma carta que, com uma inabalável certeza, sabia que não chegou às mãos da princesa. Certa noite, já estava à beira da loucura quando a gota d'água que transbordaria seu desespero estava prestes a cair. O circo vair deixar a região Jules, junte suas coisas pois partiremos em dois dias. Ele já esperava por isso, mas não agora, não sem antes falar com ela ou apenas vê-la novamente!
 Naquela mesma noite, Jules correu pela floresta rumo ao castelo, tão ofegante e determinado que mal sentiu a vegetação nociva lhe arranhar os braços e o rosto. Passou despercebido pelos guardas que faziam a ronda noturna e como um gato adulto escalou até a sacada do quarto da princesa.
 Entrou sorrateiramente pela janela e encontrou a Mendy dormindo, aconchegada em sua cama. Jules sorriu ao vê-la tão delicada, caída naquele profundo descanso. Encostou-se no beiral da janela e ali ficou por quase uma hora. Talvez, ver seu grande amor pela última vez seria o bastante se um papelzinho amassado em cima da penteadeira não tivesse lhe chamado tanto a atenção. Roubou o item, mas acabou tropeçando num cavalete, que não caiu graças ao equilíbrio da tela que repousava sobre ele. Sem mais ruídos, Jules arrumou a bagunça e fugiu sem deixar rastros.
 Ele não dormiu naquela noite. Retornou ao circo, recolheu pedaços de pão, enfiou tudo numa bolsa de couro junto a um cantil com água e sumiu de volta pela floresta. Passou a noite em cima de uma árvore numa clareira, cochilando gradativamente, mas sua mente projetava pesadelos terríveis referentes àquele maldito bilhete sem assinatura.

 Pela manhã, ouviu uma carruagem próxima ao local onde estava, e logo vozes femininas ecoaram pela clareira. É ela! Mendy estava acompanhada de uma amiga, um possível disfarce para o encontro, logo elas trocaram cochichos, e depois de algumas risadinhas, dois rapazes surgiram do meio da mata e se reuniram com as garotas. Um deles levou a amiga de Mendy para outra parte da floresta, deixando a princesa sozinha com o outro rapaz. Jules entrou em choque. Ver sua garota nos braços de outro era uma visão aterradora. Ela não pode fazer isso... não! Uma garota tão doce e inocente... Esse marginal deve pagar por ter corrompido o coração da minha princesa! E como nunca antes, estava determinado a reagir contra aquela situação antes de partir.
 Uma hora mais tarde, a carruagem voltou para recolher Mendy e sua amiga no mesmo local. Os dois rapazes fizeram comentários maliciosos sobre as garotas quando se encontraram, mas logo se despediram e se separaram pela floresta. Rapidamente, Jules desceu da árvore e seguiu aquele que há pouco tinha Mendy nos braços. Recolheu, no solo da floresta, um pesado galho podre e levou consigo; sua vítima mal notou sua presença, então ele o acertou na nuca e o derrubou. O garoto foi ao chão assustado e com medo, recuando conforme suas forças permitiam. Jules o acertou mais duas vezes na cabeça e jogou fora o galho. Não satisfeito ao ver o garoto ensanguentado e ainda vivo, subiu por cima dele e sentou-se em cima de seus braços, impedindo qualquer reação, e forçou as duas mãos contra a garganta do rapaz, que fitou os olhos furiosos de Jules enquanto este o estrangulava sem piedade.
 Jules aproveitou o resto da tarde para cavar uma cova rasa e enterrar aquele que, segundo ele, corrompeu sua bela amada. Não havia remorço nem culpa. Sentia-se leve, como se o único caminho correto acabasse de ser percorrido. Voltaria ao circo para arrumar suas coisas e dormir profundamente, pois precisava estar descansado para o último dia antes de sua partida e preparado para se despedir de seu grande amor.

 No outro dia, acordou assustado e molhado de suor, o rosto do rapaz que ele havia matado o assombrou pela madrugada. Ao ver que as estruturas do circo já estavam quase todas em ordem para partir, aliviou-se. Talvez um lugar bem distante daqui me faça esquecer toda essa loucura. O céu ficou vermelho depois do pôr-do-sol e a noite caia devagar. Jules estava distraido com o trabalho quando ela apareceu. Soube que o circo vai embora, e vim me despedir de você. Mendy estava de branco e falava como um anjo recitando um poema, por fim ela o beijou no rosto e foi embora sem mais delongas. Não! Espere... eu preciso falar com ela!
 Jules a seguiu pela floresta, mas foi interrompido por uma risada alegre e estridente da própria Mendy. Se escondeu para não ser descoberto e espiou por entre os arbustos. A princesa estava agora nos braços de outro rapaz, o namorado de sua amiga. Jules enterrou suas unhas no chão de terra e evitou um ataque súbito quando ouviu a conversa do rapaz sobre a princesa ter um caso com um palhaço. Mendy negou. É um palhaço, oras! O que minhas amigas pensariam? Por entre risos e festins, beijos apaixonados e carícias, Jules finalmente percebeu que a praga que dominava Mendy não estava em seus amantes, mas permanecia viva dentro dela.
 Retornou ao circo, para sua barraca, e chorou a morte do rapaz estrangulado. Mendy não merecia tais atitudes de minha parte. Por que eu não a ignorei? Continuou a se culpar até seu surto final, quando se levantou, recolheu um pedaço quebrado de espelho junto à tinta que usava para se pintar e sentou-se num canto mal iluminado. Ali, rasgou seus cabelos longos com a lâmina do espelho e pintou seu rosto segundo o que realmente havia se tornado: um palhaço triste e perdidamente apaixonado.
 Irrompeu de volta ao castelo numa noite em que até o ar cheirava a sangue. Novamente não foi notado pelos guardas e quando se preparava para subir até a sacada de Mendy, ouviu a voz da princesa soar baixo em algum lugar por perto. Certamente, ela não estava em seu quarto. Seguiu sua voz até encontrá-la. Estava debaixo de uma pequena ponte nos jardins do castelo, aos beijos com aguém que Jules não reconheceu, mas que julgou ser o mesmo rapaz que avistou com ela antes, naquele mesmo dia. Esperou até que se despedissem. O rapaz foi embora e Mendy voltou para o castelo.
 Assim que as luzes do quarto se acenderam, o palhaço subiu.
 Ela estava linda - vestida com o corpete que havia ganhado de Jules. Sentou-se em frente à penteadeira, soltou o diadema de prata que prendia seus cabelos e ali os escovou graciosamente. Ao ver o palhaço no espelho, seus olhos saltaram em surpresa, mas era tarde! Ele a impediu de se virar e a manteve sentada, encarando o reflexo de seu rosto amedrontado e do palhaço demoníaco atrás de si.
 Ele a segurou pelo pescoço e ela não gritou a pedido dele. Lágrimas manchavam o rosto do palhaço enquanto ele deslizava seu braço direito até sua bolsa, de onde tirou o pedaço quebrado de espelho e o pressionou contra a garganta da princesa. Mendy tentou dizer alguma coisa, mas o palhaço não queria mais ouvir sua voz e cortou-lhe a garganta num só movimento, aplicando força suficiente para dispersar sangue real sobre toda a penteadeira, além de deixar um talho em sua própria mão.
 Triste, o palhaço deitou o corpo de sua amada na cama próxima e a beijou. Seus lábios ainda estavam quentes. Antes de sair, apagou as velas e quando se virou de volta para a janela, a imagem de Mendy iluminada pelo luar, sorrindo e o observando de dentro da tela sobre o cavalete o assustou. Olhou de volta para a princesa degolada e reconheceu que apenas seu monstro havia morrido, a bela inocente que ele um dia conheceu estava bem ali, sorrindo para ele. Tomou o quadro em mãos, surpreendendo-se com sua leveza, desceu com cuidado de volta ao pátio externo do castelo e desapareceu.

 O circo partiu logo pela aurora, muito antes do corpo de Mendy ser encontrado. Num dos vagões estavam Jules e Du, retomando os eventos da última temporada do circo. Preciso lhe contar algo Jules, me encontrei com aquela princesinha ontem a noite. Aquelas pontes no jardim contam histórias meu amigo! Jules o encarou e mostrou-se indiferente aos comentários. Sabia que o monstro de Mendy estava morto, e que seu verdadeiro amor não era a vadia referida por Du, mas sim a bela sorridente no quadro, que lhe mostrava todas as manhãs sua pura inocência de princesa.

Passado presente

Eu estava parado diante de uma placa com meu nome e admito que não imaginava que veria isso em vida. Uma homenagem de um dos meus alunos fez erguer o complexo arquitetônico Professor Roberto Alves. Era irônico, afinal, eu havia reprovado este tal aluno e ele nunca terminara o curso. Poucos anos depois ele entraria para a política e se tornaria deputado seguindo os passos do pai.Enquanto ele discursava em minha honra e agradecia os colegas políticos ali presentes eu pensava se havia alguém ali inteligente o suficiente para perceber o sarcasmo e a ironia das palavras dele. Enquanto eu tentava sair do meio da multidão concentrada no Hall a voz dele bradava das caixas de som chegando aos meus ouvidos. Um aplauso estrondoso se seguiu e eu disse num sussurro: "Parabéns André, você se tornou um imbecil bastante influente."Queria aproveitar ao menos um pouco daquela idiotice e me dirigi ao buffet de frios.
Uma pequena caminhada de poucos metros, mas ainda assim apta a gerar surpresas.Uma surpresa na forma da mulher mais linda que já pus os olhos, com um caminhar tão hipnotizante e suave que parecia se mover fora daquela situação tão monótona.
Fiquei tão fascinado por ela que por alguns instantes não percebi que ela vinha também em minha direção. O vestido negro se balançava como uma brisa num movimento que trazia mistério ao caminhar, mas que não era capaz de esconder as curvas de seu corpo. O decote na parte superior deixava nus apenas o ombro direito e os braços revelando a brancura da pele de quem não gosta de se expor ao sol. No ombro esquerdo havia uma rosa de seda, negra como o vestido contrastando e destacando o suave rosto.
Ela me estendeu a mão:
- Professor Roberto, faz tempo que queria lhe reencontrar.
De perto pude olhar mais atentamente seu rosto. Era de uma beleza rara, como se tivesse sido pintado por um dos mestres da renascença. Seus cabelos loiros ondulantes pareciam refletir a beleza de um anjo ou de uma deusa antiga.
- Desculpe, mas acho que não me lembro de você.- Respondi.
- Pensei que não se lembrasse. É um mal dos homens inteligentes terem má memória para certas coisas mais triviais.
Eu sorri. Ela também. Parecia haver alguma ligação entre nós. Normalmente enquanto converso com uma bela mulher costumo olhar para seus olhos, mas assim que ela sorriu fiquei encantado. A ultima vez que isso havia acontecido, foi um pouco antes da minha vida começar a mudar.
Ela me convidou a sentar e juntos conversamos durante toda a noite. Apesar de meus pedidos, ela não me disse seu nome. Misteriosa, disse que se eu não me lembrasse dela só teria a resposta depois que ela se divertisse. Falamos de nossas carreiras, de nossas famílias e de nossas ambições. Tudo sem nomes para que segundo ela, isso não me ajudasse a lembrar. Eu sabia que não devia falar tanto a alguém que não conhecia, mas ela não parecia estranha, e o que eu tinha a perder realmente. Me sentia como se a conhecesse.
Ela me perguntou se eu já havia me casado.
- Por que a pergunta? Pareço velho demais?- Retruquei.
- Não por isso. Mas eu já te conhecia, ou se esqueceu.
- Se já me conhece deve saber a resposta. Você está jogando comigo?
- É claro que estou, depois que eu me divertir um pouco te contarei quem sou. Mas gosto de ouvir histórias, mesmo que possa já saber como elas terminam. E não digo que sei.
Eu sorri, apesar da postura e da beleza de uma mulher madura, ela parecia ter alma de criança. Tudo parecia mais simples perto dela. Eu disse isso e comecei a contar a história da minha esposa:
- Seus olhos me lembram os dela. Não pela cor ou pela forma dos olhos. Mas pelo jeito forte de olhar. Me apaixonei por ela através desse olhar...
- Estou em perigo então? - Ela perguntou.
- Certamente, mas acredito que eu esteja em maior. Para a Márcia, bastava um olhar para que eu fizesse qualquer coisa que ela quisesse.
- Como você a conheceu?
- Fomos apresentados por um amigo ainda na faculdade. Não tive muito trabalho para convencê-la a me beijar pela primeira vez, afinal, éramos muito jovens e não levamos a sério o que tínhamos a princípio. Foi só depois que ela terminou comigo que eu passei a dar valor naquilo que eu tinha.
- E o que era, Roberto?
- Alguém decente que sabia valorizar a verdadeira dedicação. O amor pode até ser tratado como uma coisa juvenil, mas deve-se ser muito maduro para realmente vivenciá-lo.
Menti enquanto dizia isso. Na verdade me considerava um homem pouco apto a falar de amor, no fundo estava apenas tentando parecer um homem mais atraente através da minha sensibilidade. Agora vejo o quanto fui tolo, caindo como um adolescente dentro dos jogos de sedução de uma mulher muito mais jovem do que eu. Até hoje me pergunto o que ela teria vivido para saber conduzir tão bem um homem.
Independente da resposta que hoje eu desejo, naquela noite ela me levou a imaginar meu passado vivo em minha alma. Seu sorriso, que lembrava tanto o sorriso com o qual Márcia me presenteou quando aceitou se casar comigo. Era como ver minha esposa jovem de novo, mas com a força e imponência que só adquiriu depois de se tornar uma mulher feita.
A mulher misteriosa se levantou e seu vestido balançou magicamente de novo, enquanto um garçom passava por nós percebi que ela não hipnotizava apenas a mim. Notei novamente que estava diante de uma verdadeira deusa, mas agora minha admiração surgia de uma forma diferente dentro de mim. A chama de desejo deu lugar à uma pedra que começava a doer em meu estomago.
- Me acompanha até meu carro? - Ela me perguntou sem olhar em meus olhos, assenti que sim e me pus a andar pelo salão ao seu lado.
Estava mais próximo dela agora então podia sentir seu perfume. Um leve aroma floral mas com algum acréscimo artificial. Não parecia ser algo tão requintado.
Comecei a pensar em como aquela noite terminaria, e admito que meus pensamentos foram no mínimo carnais. O silêncio imperou por alguns instantes até que ela perguntou, quebrando minha linha imaginária:
- Teve filhos com a Márcia?
- Ah, Não. A Márcia não pode ter filhos. Infelizmente, devido a uma doença quando tinha 22 anos, ela teve que retirar o útero.
- Entendo. Mas depois que se separou dela? Nunca...?
- Tive algumas mulheres sim, mas não para serem mães. Isso é importante demais.
- Seu tom de voz mudou. - Ela disse de forma concisa.
- Como assim?- Perguntei.
- Não parece mais tentar me convencer do que está falando.
Admito que ela me atingiu com esta frase, nunca pensei que uma mulher mais jovem que eu estivesse tão a minha frente no jogo da conquista. Comecei a pensar que ela estivesse jogando comigo. Ela continuou:
- Então, imagino que preze por boas companhias. Tem família por perto?
- Não, uma pena que não. Minha família vive em Manaus, bem longe para que eu possa visitá-los com frequência. A família de Márcia que mora aqui por perto. Sempre convivi com eles.
Saímos do salão e caminhamos pelo jardim, queria mudar de assunto, perguntar o que ela iria fazer depois dalí. Mas sentia um incomodo no estomago, ela continuou a me interrogar.
- E como é a família dela?
- Bom, os pais sempre foram ótimos. Antes do pai dela falecer eu sempre ia na casa dele. Mesmo depois da separação. Ela tinha um primo que vivia com eles e que também já faleceu em um acidente de moto.
- Mais alguém? Não parece ser uma família grande.
- Ela tinha uma irmã. Mas nunca a vi, a não ser em uma foto dela ao lado da Márcia quando eram crianças. Ela foi para a França antes que eu conhecesse minha ex-esposa e as fotos dela foram perdidas em um incêndio poucos dias antes de eu pedi-la em namoro.
- Que história interessante, se não fosse seu tom sério pensaria que está brincando comigo. - Ela disse.
Chegamos ao carro, ela pegou as chaves e as levou a tranca da porta. Ao tocar nela sentiu o frio da noite que estava impregnado no carro. Rapidamente ela levou as mãos próximas a boca e com um sopro suave aqueceu os dedos. Minha ex-esposa fazia o mesmo.
A sensação dentro de mim cresceu de súbito, se tornando exatamente a sensação de levar um soco na barriga. Me lembrei de vários momentos que há muito havia trancado no fundo de minha mente.
Olhei para a frente, a porta do carro estava aberta e a dama parada olhando para mim.
- Gostaria de ir comigo? - Ela perguntou.
- Não acho apropriado. - Respondi.
Ela não recusou, nem se expressou. Apenas sorriu, e foi embora.
Hoje, sinto-me diferente. Depois de abrir um envelope que chegou pelo correio e receber aquela mesma foto onde estão minha ex-esposa e de sua irmã. Nunca havia dado atenção àquela foto, senão perceberia que as irmãs tinham o mesmo sorriso. No verso havia uma frase interessante, ela me dizia que eu a tinha convencido e que ela estava errada. Que sempre havia uma esperança e que a irmã dela nunca soube o que queria de fato. Eu sorri depois de ler, pensei em pegar o telefone mas já estava atrasado para o trabalho.
Quando contei aos meus alunos sobre o ocorrido, eles me disseram que em tempos de internet e computadores nos celulares isso nunca aconteceria. Eu respondi que isso tiraria toda a graça de um bom conto. No fundo da sala um garoto virou os olhos e voltou a ouvir música em seu fone, não tenho dúvidas de que ele se tornará alguém muito influente.
 
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