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DOCE MEL


Sabe aquela vontade, esperança, de que algum dia vai aparecer na sua vida alguém que vai mudá-la para sempre? Então, isso aconteceu comigo, e por muito tempo eu me perguntei se isso foi uma coisa boa ou ruim. Se a chave de toda a minha transformação veio para melhorar ou para simplesmente complicar a minha existência nesse planeta. Meu nome é Ricardo e vou contar para vocês a história da mulher que mudou a minha vida.
As pessoas brincam que trinta é a idade do sucesso, e que é lá que você começa a viver plenamente. Para mim não poderia ser maior esta verdade. Aos meus trinta anos eu já era dono de várias lojas, e vivia dos aluguéis destes imóveis. Tinha uma namorada linda e rasa, par perfeito para um homem que não gosta de ser questionado. Dinheiro, beleza, risos, eram coisas que faziam parte da minha vida. Eu adquiri certo prestígio social na minha cidade, já que meus imóveis eram muitos e eu fornecia estes espaços para lojas de qualidade. Eu estava nas colunas sociais dos jornais populares, e até me tornei vereador.  Um sonho de vida.
Algum dia, um dos espaços mais disputados no centro ficou vago, e as propostas choveram sobre mim. Eram farmácias, locadoras, pizzarias, bares, todos querendo o lugar. Laura, minha então namorada, era admiradora do balé e seu sonho era ser uma bailarina. Atendendo ao seu capricho, decidi ceder o espaço para uma renomada escola de dança. Por mais que alguns clientes antigos ficassem bravos com a ideia, eu não poderia desgostar a mulher a quem possivelmente me casaria. E assim foi. Troquei telefonemas com a proprietária, que se apresentou como Daniela, e agendei um encontro.
Cheguei ao restaurante, onde eu tradicionalmente realizava estas reuniões, com alguns minutos de antecedência. No meu ramo, demonstrar respeito ao cliente é uma boa forma de ascensão.  Passado algum tempo Daniela apareceu. E desse momento em diante minha vida já não fora mais a mesma.
Daniela era uma mulher alta, de corpo delicado e miúdo, andava altiva. Seus cabelos loiros e lisos, presos num alto rabo de cavalo, refletiam o sol. Seu rosto desenhado em linhas finas, e um olhar distraído, marcavam esta beldade. Ela se aproximou e me cumprimentou, eu em distração não disse uma palavra.
-Boa tarde, Daniela. – disse depois de algum tempo, sem jeito.
- Pode me chamar de Mel, por favor. – pediu ela.
Pronto, eu sabia que aquele vacilo, dado frente a ela, me faria desandar com toda a comodidade que minha vida vinha apresentando.
Recomposto, discorri toda a burocracia e finalizamos o acordo. Seria ela quem ocuparia o espaço central, tornando-se assim umas das clientes com a qual eu teria que estar em constante contato. Terminada a reunião eu me despedi apressado, não queria continuar por muito tempo admirando aquela figura.
Laura nunca me pareceu tão empolgada quanto naquela época. Ela vestia suas roupas, colocava sua sapatilha, e saia radiante para suas aulas. Ela ficava mais linda do que o de costume, mas nem de longe se comparava a Mel quando em seu traje de balé. Quando dançava, nas oportunidades que tive de apreciar, Mel mudava o seu olhar que passava daquela doçura distraída para um foco inabalável. Seu corpo ridiculamente feminino fazia parecer espantoso a força e a agilidade com que ela descrevia os movimentos. A cada visita à escola eu me demorava mais. Cada vez mais envolvido com a professora. Nós começamos a trocar olhares. Ela percebeu que eu não estava mais ali pela Laura, mas sim para vê-la dançar. E nisso Mel não perdoou. Sua dança foi ficando mais intensa, os passos mais alucinantes, sua respiração ofegante me fazia estremecer. Tive medo do que pudesse acontecer, eu gostava muito da Laura para traí-la. Eu precisava decidir a minha vida.
Mulher sabe quando esta sendo trocada, e Laura que de boba tinha só a cara, começou a reclamar da minha frieza, das minhas delongas no trabalho. Me colocou contra a parede. Eu já não aguentava mais aquilo.
Um dia contei a Laura sobre a minha queda pela Mel. Num primeiro momento Laura ficou extremamente aborrecida, mas depois ela me olhou com desprezo nos olhos. E me disse, da maneira que se segue, sem mudar nenhuma palavra:
-Então saiba você, Ricardo, que você está apaixonado por um homem!
Eu não entendi a frase naquele momento, mas ela fez questão de me explicar. Contou o segredo mais íntimo de sua amiga e professora. Mel, Daniela, era antes na verdade Daniel. Um transexual.
Senti-me envergonhado, enojado, enraivecido, enganado, entre muitas outras coisas. Laura conseguiu o que queria. Ela saiu tempestuosa levando consigo todas as suas coisas e o sabor de ter me destruído.
Eu fiquei três semanas absorto em pensamentos. Tranquei-me em meu apartamento e fiquei remoendo meus sentimentos. Refleti sobre tudo que via de bom na Mel, na potência da nossa química. Era inegável, eu ainda gostava dela. Por mais racional que eu tentasse ser, por mais doloroso que fosse, era preciso admitir, eu gostava de uma mulher que não era mulher.
Daniela me ligou com alguma frequência, preocupada comigo, quando soube dos fatos. E eu a neguei. Neguei pelo tempo necessário até que a minha ficha caísse.
Decidi estudar, corri atrás. Li livros de psicologia, e procurei na internet, vi depoimentos, estudei casos de pessoas famosas. Depois dos meus estudos a resposta estava clara diante dos meus olhos. Ela nunca foi um homem. Mesmo nascendo como tal, ela não via e sentia sua identidade assim. Quem era eu, ou a Laura, para dizer que “ele” na verdade não era ela?
Tomado de ânimo renovado, e coragem, após todo o meu transtorno, decidi procurá-la. Ela estava no mesmo lugar, da mesma maneira em que eu havia visto da última vez; dançando. Se era “O Quebra Nozes” ou “Lago dos Cisnes”, não saberia dizer. Tudo o que eu sei é que atravessei o salão em meio à melodia que tocava no fundo e a tomei em meus braços. Beijei como se nunca tivesse beijado antes, não com aquele mesmo amor. Olhando novamente para o seu rosto eu não via Daniel ou Daniela, mas sim a pessoa com a qual eu passaria o resto dos meus dias: Mel.


 
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