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A Namorada que Nunca Beijei

 Mesmo depois que me mudei, o conceito de novas oportunidades numa nova cidade nunca foi o bastante para me animar. Era um fim de tarde agradável, mas tudo que eu realmente queria era virar a rua Minas Gerais em direção ao meu apartamento.
 Rumores vindos de todos os cantos julgavam tal professora de história perversa. Como não queria arriscar um ‘zero’, seria melhor sim, cair na conversa dos colegas e ir correndo para a biblioteca pesquisar sobre aquele trabalho complicado, do qual o tema eu não me lembro exatamente. Por falar em lembranças, foi naquela mesma noite que conheci minha verdadeira oportunidade na cidade nova.
 No caminho, estava do meu lado e, não me lembro o motivo, arranhou meu braço sutilmente, numa demonstração de suas unhas feitas. Disse a ela que aquilo me excitava e ela respondeu com uma careta. Que mancada! Meu segundo contato, não menos desastroso, foi um piadinha com a estatura dela; ela pode não ter gostado muito, mas eu estava feliz por haver conseguido ao menos arrancar daquele rostinho um sorriso forçado. E parecia uma estranha ligação. Ela estava aonde eu ia, e não importava aonde ela fosse, meus pés também me guiavam até lá. Quanto ao trabalho de história, creio que alguém tenha dado o devido progresso à ele.
 Já era noite quando descemos de volta pela 7 de Setembro até o ponto de ônibus onde ela partia.  O assunto rendeu acerca de filmes e seriados, e ainda hoje, quando assisto Heroes me lembro dela. Voltei pra casa me sentindo um idiota. Durante muito tempo eu vinha planejando uma maneira de me achegar até ela e agora eu estava ali, andando e devaneando. Sua voz ecoava na minha cabeça e permaneceu até que peguei no sono.
 As semanas seguintes foram de grande progresso virtual. Trocamos nossos endereços eletrônicos e a conversa durava horas, sempre que possível. No colégio, eu ainda não ousava muito, talvez porque havia reparado na grossa aliança que ela usava, ou apenas pela precaução de não estragar o que já havia se tornado importante demais. Do meu apelido, ela usava apenas a primeira sílaba; já eu gostava do nome dela, e do sobrenome também; eu o repetia para mim mesmo até me convencer de que ela era real e estava bem ali, conversando comigo.
 Eu me animei. O tempo passou rápido e aquele sentimento crescia, a cidade estranha se tornou “minha cidade” e ela o meu ponto de equilíbrio. Era ela que ouvia minhas queixas, lia minhas histórias, guardava meus segredos e me entendia por completo. Vez ou outra ela dizia que eu era o amigo perfeito, quando na verdade eu apenas escolhia bem minhas palavras para lidar com ela, e evitava ao máximo minhas peculiares mentiras. Se fosse feita uma lista de pessoas para quem eu nunca menti, ela estaria lá.
 O medo de conhecê-la sumiu e tornou-se o prazer diário de estar com ela, e ainda que as amigas a roubasse de mim, eu sempre estava em algum lugar, observando...
 Lembro-me de uma vez em que apareceu sem aquele anél maldito. Eu não me contive em perguntar, mas a resposta não foi nada estimulante, ela apenas o esqueceu em algum lugar. Quem era ele? Quem era o triunfante que namorava aquela garota? Ele existia, mas nunca se mostrava, e ela sempre se queixava dos seus ciúmes. Tive um pouco de medo, mas o medo de vê-la longe de mim era muito mais forte. Quando por fim, o namorado dela apareceu, interrompendo uma agradável conversa na porta do colégio, houve um frio no meu estômago, tão frio quanto a relação desgastada daqueles dois. Durante muitos dias pensei em permanecer um eterno amigo e não tentar nada além, me coloquei no lugar daquele rapaz e pude perceber o que ele estava perdendo aos poucos – ou já havia perdido há muito tempo.
 Com o fim do ano, vieram meus últimos momentos naquela cidade encantadora. Estava decidido, mas antes de deixar tudo para trás (de novo) eu precisava resolver o que tanto me incomodava. Eu a chamei para uma conversa particular, contei a verdade sobre como havia chegado ali e minha imensa alegria de ter conhecido alguém como ela. Cheguei até minha despedida e, sem muito demorar, ao meu profundo sentimento, que agora estava explícito e enterrado, pois era em vão.
 Um silêncio profundo inundou as semanas seguintes. Ela sabia. Me senti um tolo por não ter dito antes, mas de que adiantaria? A aliança ainda estava lá. Conversamos pouco neste final, eu disse algo sobre os dias em que eu iria embora e uma música que sempre ouvia pensando nela; em todas essas breves conversas ela lamentava a minha partida, e eu odiava esses momentos.
 Poucos dias antes do fim das aulas, eu já havia me acostumado com a nova realidade. Entretanto, para minha surpresa, ela decidiu desabafar. Então li uma longa história de um namoro frustrado, tomei suas dores e demais sentimentos, até que eles tocaram em mim. Enquanto aquele cara carregava o título de namorado, fui eu quem ouviu o que ela tinha para dizer e não tinha coragem, era eu quem guardava seus segredos como se fossem os meus, e também era eu um dos poucos que conhecia sua vida por inteiro, dentre coisas simples a outras complexas demais para um namorado entender. Era comigo que ela se sentia segura, brincava e ria do mundo sempre que queria, pois era comigo que ela sorria e tinha liberdade.
 Eu chorei. Chorei como havia prometido jamais chorar por alguém. Então, com o rosto surrado em lágrimas percebi que não haviam motivos exatos para isso, pois pouco faltou entre nós, um beijo talvez. Agora, mesmo estando longe, eu me lembrarei da sua pequena estatura, seus cabelos lisos, seu olhar inocente e sua voz encantadora. Me lembrarei de sua fantasia de índia para o trabalho de teatro e das fotos que tiramos vestidos de palhaço, acompanhados de um fofo peixe de pelúcia. Daqui eu me lembrarei da menina que acreditava em anjos e queria voar. Minha baixinha preferida. Do bom amigo que fui, para a namorada que nunca beijei.

Um sorriso nas cinzas

Passava da meia noite no centro de Salvador, o trânsito e os bares nas proximidades da Avenida Tancredo Neves ainda mantinham um ritmo pulsante. Mas, no nono andar do edifício Luís Magalhães havia um relativo silêncio. Naquela noite quente de verão, eu estava deitado em meu quarto no apartamento 903. Me lembro que olhava para cima já admitindo minha derrota para a insônia. Fazia alguns dias que estava ansioso. Hoje, um amigo me disse que era normal, afinal no dia seguinte pediria em noivado aquela que estava ao meu lado há três anos. Não é algo se faça todos os dias. Temi dizer a ele que não era exatamente isso que me preocupava, embora houvesse certa ligação.
Levantei-me da cama, retirei de sobre o guarda-roupa uma caixa e de dentro dela alguns papéis e uma fotografia que estava no fundo. A imagem trazia uma versão mais jovem de mim, abraçado a uma linda garota que sorria na sombra de coqueiro, a praia era vista ao fundo e o céu estava pintado de poucas nuvens. Um cenário lindo que transmitia felicidade, mas não tanto quanto os nossos sorrisos.
Mas, obviamente aquela não era minha futura noiva. Era na verdade uma lembrança da minha mocidade, na época em eu pensava ser capaz de conhecer e reconhecer o verdadeiro amor. Mas devo admitir que ainda traga comigo as lembranças daquele sorriso meigo e o sabor de seus beijos sinceros na memória. E na minha recente situação, não era condizente. Era hora de deixar qualquer lembrança para trás e começar a construir o meu futuro ao lado de quem o quisesse.
Então, peguei a foto e os papéis, no alto deles estava escrito meu nome em uma dedicatória. Cartas que também deveriam ser apagadas. Andei até a varanda lentamente, coloquei os papéis no chão e sobre eles a fotografia, em poucos minutos os queimei. Enquanto as cinzas subiam no ar, vi o sorriso mais lindo que conheci se desfazer na brasa e então dormi tranquilo por toda a noite.
No dia seguinte me arrumei, estava mais apresentável do que de costume. Usei meu melhor perfume e um terno novo sobre uma camisa de marca. Encontrei-me com minha namorada em um restaurante. Trazia no bolso do paletó a caixa com o anel. Tudo estava perfeito.
Mas antes que eu pudesse fazer o pedido ela me disse que tinha que me dizer algo. Disse que estava confusa e que precisava de um tempo para pensar. Eu consenti. E assim ela pensou por alguns dias e por fim reatou com um namorado da faculdade que havia voltado à cidade há alguns meses. É claro que virei motivo de piada quando contei esta história aos meus amigos de barzinho. Mas não me incomodei, até ri junto com eles. Afinal, hoje tenho muito mais noites calmas.

AVASSALADORA

Era lá para o mês de setembro e eu me lembro como se fosse ontem, aquele calor, aquela secura que era o ar por aquelas bandas de Goiás. Como eu amava aquelas terras, aquelas pessoas. Uma mistura de sangue e suor, índio com branco, nosso Brasil.
Passei grande parte da minha vida lá, alguns momentos difíceis, fome, calor, doenças. Mas inegavelmente são essas coisas que ajudam a fortalecer o caráter, a formar a história do homem. Não sei, penso assim talvez tomando exemplo de meu pai, homem grosso, bruto, mas totalmente honesto e trabalhador.  Naqueles tempos era preciso ser forte para sobreviver, e eu não era. Sempre fui molenga, vítima das injúrias causadas pelos meus amiguinhos, e até por meus parentes. Era magricela, sem muita aptidão para o gado, desajeitado com os ofícios do metal, um traste. Mas como sempre fui assim, nunca me importei. Aprendi com o padre Inácio que Deus é justo e que sempre teremos aquilo que precisamos, nem mais e nem menos. Paciente e esperançoso, eu esperei.
Apesar de todas as boas coisas da infância, da família, não são por estes motivos que retorno minha mente para as chapadas de Goiás. Não, definitivamente não é por isso. O que trouxe de lá na verdade foi meu primeiro amor, um primeiro sopro de vida naquela que era quase desgraçada. Me pego sempre pensando lá sim, mas não para a minha terra de origem, mas sim para Antônia. Na verdade, acho que a única coisa que me faz lembrar com nostalgia para o centro-oeste é a sombra das lembranças que eu tenho ao lado de Antônia. Aquela coisa mágica, uma distração fatal, que transforma a realidade penosa, em fardo leve. Tal como os bêbados que quando passado o torpor do álcool, ele volta para sua realidade, volta trazendo os pesares de sua vida, é assim que eu me vejo. Antônia me entorpeceu, e fez de mim, um cara qualquer, seu amante.
Eu tinha quatorze anos naquela época e estava em casa. Sem camisa, deitado numa rede, sem mover um músculo, eu escutava minha mãe cantando na cozinha enquanto preparava o almoço que em breve eu levaria para meu pai. Minha mãe era uma mulher gorda, que mesmo com seu corpanzil conseguia mover-se com graça e sempre fez meu pai muito feliz. Quando jovem eu pensava que somente uma mulher gorda poderia me fazer feliz. Ela gritou dizendo que a marmita estava pronta. Já havia colocado a comida simples no pote de barro. Saltei da rede, peguei a comida, e saí desembestado pela rua de terra. Descalço, suado, com os cabelos escuros colados no rosto, eu fui ao encontro do meu velho. Atravessei o vilarejo e andei mais um pouco através de alguns pastos. Perto do gado eu vi meu velho, de gibão e botas. Chapéu e berrante. Meu herói. Ele conversava sério com outro homem, este eu não conhecia. E ele me pareceu tão esquisito. Diferente de tudo o que eu já vira. Alto, com o rosto todo sujo de pequenas bolinhas, e seu cabelo era laranja. Aquilo não era normal, onde já se vira alguém com cabelo alaranjado?  Não questionei, entreguei a marmita e quando já ia sair meu pai me chamou.
-Volte aqui moleque. –disse ele em tom normal - Este é o meu filho, Zé. – Zé era o ruivo.
O homem me olhou e sorriu largamente. Eu não entendi, mas parecia que na minha esquisitice ele viu algo de bom, e então o Zé falou.
-Tudo bem menino? – ele falava diferente de meu pai, fala baixo, com clareza – Vou te apresentar a minha filha, ela ainda não fez nenhum amigo. Quem sabe você não mostra as redondezas pra ela?
Eu nunca senti tamanho desânimo na minha vida, não bastava os trabalhos impostos por minha mãe eu ainda teria que ficar mostrando a cidade para uma forasteira. O meu dia não poderia ficar pior. E para completar meu pai ficou me observando, esperando que eu confirmasse a misera tarefa. E em respeito a ele acenei com a cabeça.
-Ótimo, ela se chama Antônia, nós nos mudamos para onde morava o Sr. Venceslau. Vá. Vá encontrar-se com ela. E veja bem o que fará com a minha menina, respeito! – e nesse ponto ele falou sério, olhando-me de cima para baixo.
E o que ele pensou que eu faria? Nunca, nenhuma menina da vila ou das redondezas quisera nada comigo, eu era magro e inútil. Todos meus “colegas” já eram vaqueiros, e ficavam mais fortes a cada dia. Não, o Sr. Zé poderia ficar tranquilo. Saí desanimado para voltar à cidade.
O sol da tarde estava mais forte, então passei em casa e vesti um jaleco de pano leve. E tomei o caminho para casa do Sr. Venceslau. Por que o velho tinha que morrer? Agora no lugar do tão agradável Venceslau eu teria uma família forasteira, aparentemente de hábitos estranhos, e o pior, uma filha que iria me esnobar. Perfeito.
Quando eu estava me aproximando da casa, vi uma mulher magra e alta sentada à porta. Essa não tinha os cabelos laranja, mas sim amarelo. Menos estranho um pouco. Ela parecia entretida com o movimento das carroças, das lavadeiras que após terminarem de fazer o almoço para seus maridos retornariam ao serviço, tudo fascinava aquela mulher. Eu sem jeito, meio encabulado, me aproximei. Ela deixou cair seu olhar sobre mim, e eu nunca vi olhos azuis tão intensos. Era o céu e o mar dentro de dois orbes. Ela sorriu para mim, mostrando seus dentes tortos e amarelados.
-Olá menino, quer alguma coisa? –murchei-me como fazem os cães, e olhando para baixo a respondi.
-Sr. Zé me pediu que mostrasse as redondezas para sua filha, Antônia.
A mulher soltou um gritinho agudo de alegria e se colocou de pé num salto.
-Antônia! –berrou a senhora bem na minha frente. –Venha minha filha, rápido!
Da penumbra da casa apareceu ela, a menina Antônia. Ela era linda, nunca vi tanta beleza em minha vida. Os olhos claros, aquele azul, como o da mãe. Os cabelos pálidos caiam-lhe sobre os ombros. Devia ter uns treze anos, mas seu corpo era de menina mais velha, colo grande, seios rijos. Vendo-me a garota lançou-me um olhar indescritível, olhar de predador, de quem descobre pedra rara no próprio quintal. Mas fora tão intenso quanto rápido, em questão de segundos desfez-se de seu semblante e perguntou a sua mãe.
-O que foi mamãe? –ela tinha a mesma calma do pai, uma educação rara por ali.
-Este menino veio a pedido de seu pai. Ele se chama...Como você se chama? –disse a mãe percebendo a indelicadeza de não perguntar o nome e nem de se apresentar.
-Lucas. –disse recorrendo a alguma coisa interessante no chão. Sem me dar conta eu ainda estava olhando fixamente para a jovem Antônia.
-Eu sou Andresa, e essa é minha filha Antônia. –diferente do que Dona Andresa esperava, eu não disse “prazer em conhecê-la”, para sua decepção.
-Veio a pedido de meu pai fazer o que? –perguntou ela diretamente a mãe ignorando completamente a minha presença.
-Mostrar-lhe a cidadezinha e as suas redondezas.
-Ah...-disse ela parecendo desanimada.
-Agora vá, e me conte tudo depois!
A menina passou por mim e disse um tchau para sua mãe sem olhar para trás. Foi andando.
-Tchau Dona Andresa. –disse eu antes de sair correndo para alcançar a garota.
O passeio começou pela cidade, eu mostrei a ela a padaria, a igreja, a escola, o hospital, a prefeitura. Contei sobre o padeiro Olavo, sobre padre Inácio e o prefeito Bastião. Ela não mostrou interesse por nada. Ignorava-me quando perguntava alguma coisa sobre ela, como da onde veio, ou sobre o que gostava de fazer. Fazia como as outras meninas, me ignorava. Por vezes cruzávamos com alguns garotos e ela sorria maliciosamente para eles, e em seguida voltava-se para mim com alguma pergunta sobre os garotos dali. E eu a frustrava, não sabia as respostas. Na verdade nem entendia as perguntas. Com uma hora de passeio eu já tinha perdido toda a excitação que tivera com o primeiro encontro.  Era como se eu nem estivesse ali. Todos na cidade nos viram andando juntos, mas como era eu quem estava ao lado, logo perceberam que não era nada além de um passeio desinteressante. E isso fora de verdade, tão desinteressante quanto poderia ter sido.
Logo que acabei de mostrar-lhe a cidade, disse que tinha ainda a serra, os pastos, e a cachoeira para irmos. Ao falar da cachoeira seus olhos brilharam. Afinal, ela também estava com calor. Seu vestidinho costurado a mão estava quase todo molhado de suor, e o cabelo cor de palha estava já preso em um rabo de cavalo, tudo para amenizar o calor.
Sem escolha eu parti, levei a garota por entre a pequena mata que se formava nas proximidades da cachoeira.  Agora, longe da cidade, ela parecia mais natural ao meu lado. Conversamos um pouco, me disse que viera de Minas Gerais, de Belo Horizonte, não que eu já tivesse ouvido falar, mas me pareceu interessante. Ela disse que não estava muito feliz com a mudança, mas que o pai herdou de seu avô as terras e veio para cuidar delas por aqui. Naquele momento eu já não me importava mais com o fato de ter sido ignorado, ou de que ela era apenas mais uma que me colocaria num canto qualquer. Antônia era uma daquelas pessoas irresistíveis. Ela tinha o papo leve como o vento, enevoava todos á sua volta. Não existia pessoa que não gostasse dela, apenas algumas mulheres que se sentiam ameaçadas de alguma forma por ela, mas até estas se forçavam a não gostar. Ela era linda, simpática, conversava gostoso, tinha um corpo sedutor, e o seu sorriso combinado com o olhar nos colocam como vassalos aos seus pés. Sim, ela era avassaladora.
De esnobe e distante, Antônia se transformou em moleca e sapeca. No caminho me contou sobre Belo Horizonte e de como a vida lá era animada.  Disse que tinha muito dinheiro, e que isso lhe propusera inúmeras regalias. Naquele momento eu não entendia nada sobre dinheiro, e nem me importava com isso. Eu queria era poder ouvir infinitamente a sua voz, e poder observá-la sem interrupção.
O som dá queda d’água se fez nítido, e seu olhar se desviou por um instante da trilha para os meus olhos. Nós nos entreolhamos e por fim ela sorriu.
-Eu adoro nadar, o último a chegar é a mulher do padre. –e saiu correndo loucamente dando risadas.
Instintivamente eu disparei atrás da menina, mas ela era rápida, e eu não consegui chegar a tempo de falar nada, quando estava próximo o suficiente para ver a queda ela já havia pulado. Tibum!
Aproximei-me receoso da beirada da queda, e lá em baixo estava ela toda empolgada com a água fria, que naquele dia quente era um alento para o corpo. Preocupado eu gritei:
-Você esta bem?
-Pula logo seu medroso! Vem nadar comigo. –mas eu tinha medo, eram dois metros de queda, eu temia por me machucar, e não pulei.
Contornei a queda e a encontrei nadando em círculos na bacia que se formava ao pé da queda. Ao me aproximar notei seu vestido todo molhado, amassado, jogado a margem do rio.  Ao perceber que eu olhava confuso para a roupa no chão ela se ergueu da água. E eu vi seu corpo seminu. Era primeira vez que eu olhava para algo orgânico com desejo, ainda aturdido com a situação eu fixei meus olhos em seus seios rosados, duros, em pé como se a gravidade ignorasse as jovens donzelas. E após perceber o que estava acontecendo tampei meu rosto instantaneamente, com vergonha, embaraçado.  Sentia um rubor percorrer-me o corpo, nunca me sentira assim, talvez quando na hora do banho me tocava, ou em algumas manhãs esporádicas. Ela estava ali, apenas de calcinha e eu não fazia idéia do que exatamente estava acontecendo.  Sua voz agora já não me chamava, eu ouvi apenas uma risada, da qual eu não soube distinguir entre deboche ou espanto. O fato é que após eu tampar meu rosto senti aquela massa molhada recostar sobre meu corpo quente. Seus seios comprimidos contra meu peito descoberto, quanto de súbito eu senti seus lábios sobre os meus. No susto eu a empurrei violentamente, que diabos ela pensava que estava fazendo?  Abri os meus olhos para a realidade, e o que eu vi não me esqueço jamais. Antônia séria, espantada com minha reação. Sentia-se rejeitada, estranha. Pegou sua roupa e a vestiu daquela maneira, molhada, suja. Sumiu em meio à mata. Eu ainda estava atônico, e não consegui segui - lá.
Aquela noite eu não dormi. Eu sempre soube da minha condição inútil, mas aquilo era demais até para mim. Não queria dormir, Antônia não merecia aquela minha reação, eu tinha que me redimir. Como ninguém nunca esperava nada especial de mim, não existia repressão por nada que eu fazia. Vesti meus farrapos, e saí silencioso, sem acordar ninguém.  Saí para rua me sentindo renovado, sentia-me diferente.
A cidade de noite era morta, habitada apenas pelo som das aves e do coaxar dos sapos. Mas eu a conhecia, e não tinha medo. Passei pela escola, vi a delegacia toda apagada, a prefeitura. Ouvi até mesmo o ronco de algum bêbado caído ao chão. Mas não parei. Fui até a antiga casa do Sr. Venceslau. Estava a sua porta. O que fazer? Não sabia, senti-me impotente novamente. Mas antes que o desânimo se apoderasse de mim, dei a volta procurando janelas. Procurando a sua janela. Na parte de trás da casa, encontrei a janela de Antônia aberta, e pendurado no parapeito pude vê-la dormindo.
-Ei, Antônia. –sussurrei alto.
Ela não estava totalmente adormecida, e ao me ver na janela não se assustou. Estava séria, aborrecida. Os olhos estavam marejados.
-O que você quer? – perguntou ríspida.
Eu não sabia ao certo, mas o que seguiu parece ter-la satisfeito.
-Eu quero você. - Seus olhos brilharam, e aquele sorriso, o sorriso que tanto me conquistou estava lá novamente.
Ela saltou a janela e me seguiu rumo a serra. Não dissemos uma palavra no caminho escuro, iluminado pelo luar.  Deitamos na grama. Eu magro, fraco, inútil, sentia-me forte e vigoroso. Acariciei sua pele, beijei sua fronte. Tremia, ofegava. Não entendia o que estava acontecendo, o que era aquilo, mas aquilo me envolveu. Envolveu-nos. Sentia meu corpo cavernoso se enrijecer, e os beijos da donzela eram infinitos. Todo o amor que existia no mundo estava para mim. Eu não sei o que eu disse para ela, não me lembro. Só consigo me lembrar que estivemos juntos até que o primeiro galo cantou, quando no susto, corremos para nossas casas, cansados, fatigados de nosso amor.   Não nos despedimos.
Eu dormi até a hora do almoço naquele dia, e minha mãe se preocupou. Pensou que eu estava adoentado, disse que fora a água fria da cachoeira, não me deixou sair de casa. Não vi Antônia naquele dia.
No segundo dia, levantei cedo e mostrei toda minha saúde para minha mãe, comi bem e disse adeus. Corri veloz para chegar à casa da minha amada, com sorriso no rosto, eu já não era aquele magricela inútil. Eu era um homem desejado. Bati a porta, e fui recebido pelo Sr. Zé, que me disse que a filha havia saído a pouco para buscar pão. Agradeci pela informação e corri até a padaria. Chegando lá Olavo, o padeiro, me disse que a jovem não havia passado por lá.  Saí confuso, meio desolado.
Saindo da padaria ouvi gemidinhos abafados, risos doces. Dei a volta e entrei no beco, e para minha surpresa lá estava Antônia e um menino qualquer. Os dois estavam se atracando, se divertindo. Antônia transformava a vida de mais um garoto. Naquele momento esquisito, eu deveria ter sentido nojo, repugnância, raiva, mas não senti nada disso. Eu compreendi como uma luz. Eu vi quem era Antônia claramente.
Uma garota extremamente fácil de gostar. Plena de amor, e querendo repassar. Não tinha medo da vida, tampouco de viver. Sabia o que queria, queria ser feliz. Muitos podem pensar que ela era vulgar, promiscua, e confesso que seguindo a linha moral da sociedade ela não se enquadrava nos bons padrões. Mas ela não era nada disso. Jovial, simpática, quase inocente. Ela atendia sem pudor a vontade do seu corpo. Descobri que na vida existem pessoas assim, que simplesmente vivem as coisas. Elas existem para transformar as vidas alheias, para mostrar que o amor existe para qualquer um.
Eu não era assim, e não me tornei assim.  Nós continuamos amigos até o dia da minha partida. Por vezes nos ficávamos juntos, nos amávamos. Fazíamos o que sentíamos.Eu fui embora. Logo depois fora sua vez, adulta, queria atingir o mundo com o seu calor. Ela se foi deixando para trás pessoas felizes, sem muito do que reclamar.
Antônia era avassaladora, marcara minha vida, eternizara a minha Goiás! Mas não entendia naquela época o porquê dela não ser gorda, afinal eram apenas as mulheres gordas que poderiam me fazer feliz. Não, não eram. Quando adulto entendi que minha mãe fazia meu pai feliz não por ser gorda. As mulheres nos fazem felizes de maneiras obscuras.
Antônia não era gorda, e mesmo assim me fez muito feliz.





 
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